Brasil, Rio de Janeiro, primeiro mês de 1969. A barba protuberante e a cara de gringo facilmente chamam a atenção de quem passa por Hubert Fichte, ainda que seja ele um completo desconhecido naquela cidade. Provavelmente não há quem tenha lido seu romance Die Palette, lançado no ano anterior na Alemanha, sua terra natal, e responsável por uma projeção pouco antes imaginada de sua figura. Principalmente para um antropólogo/etnólogo que propõe uma narrativa poética-experimental, despojada de condutas e estruturas linguísticas formais, e que faz da homossexualidade – e do sexo – elemento central das narrativas.

Foi justamente o dinheiro com a venda do livro que permitiu a ele e a sua então companheira, a fotógrafa Leonore Mau – com quem formava um casal atípico, mais conectado por uma parceria artística do que pelo desejo carnal –, a vinda para “o país cujos marinheiros não se mostravam dispostos a abrir mão de sexo na viagem ao Velho Mundo”, como escreve Jäcki, sua projeção autoficcional no livro Explosão – Romance da etnologia. A publicação, lançada no mês passado pela editora Hedra, é o volume sete de um projeto literário inacabado intitulado A história da sensibilidade. Com lacunas, abrange 18 de 19 publicações planejadas, entre romances, tratados etnográficos, entrevistas políticas e artigos. A intenção era compor, por meio de uma prosa autobiográfica, impressões de pessoas que foram impactadas pelo holocausto, pelo colonialismo e pela fome.


“É um dos melhores livros que já li. Seu humor, seu constante ziguezague entre jornalismo acentuado e realismo, e a linguagem poética, retratando profundamente vários elementos de diversos momentos históricos da cultura brasileira, são fantásticos”, destaca o jornalista e teórico alemão Diedrich Diederichsen. É dele e do curador Anselm Franke a idealização do projeto internacional – do qual o lançamento do livro faz parte – para celebrar o etnólogo nos países que explorou e sobre os quais escreveu. Batizado de Hubert Fichte: amor e etnologia, ele foi inaugurado na Alemanha pela Haus der Kulturen der Welt (HKW) em parceria com o Goethe-Institut. O primeiro ponto de parada foi Lisboa, em setembro passado, chegando no início de novembro a Salvador e, de agora até 13 janeiro de 2018, ao Rio de Janeiro, onde está em cartaz a exposição Implosão: trans(relacion)ando, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Na sequência, irá para o Chile, Senegal e EUA, sendo concluído em solo alemão, em 2019.

CONSTRUÇÃO DO SER
Hubert Fichte nasceu em 21 de março de 1935, na cidade de Perleberg, no estado de Brandemburgo. Seu pai, a quem nunca conheceu, era um comerciante judeu que migrou para a Suécia. Sua mãe era estenodatilógrafa e, embora protestante, enviou o filho para um orfanato católico na Baviera na esperança de o proteger da polícia nazista. Aos 11 anos, Fichte começou a trabalhar como ator mirim em teatros de Hamburgo e, aos 14, conheceu o escritor e dramaturgo Hans Henny Jahnn (1894-1959), responsável por impactar profundamente o seu desenvolvimento intelectual e também por o ajudar a compreender a sua própria homossexualidade. Dessa época até seus 20 e poucos anos, o futuro antropólogo se dedicou a estudar francês e agricultura, tendo trabalhado em uma fazenda na Provença, em um acampamento parisiense para pessoas de baixo poder aquisitivo e em um centro de recuperação para jovens delinquentes na Suécia.

Tudo isso foi fundamental para o desenvolvimento de sua escrita-experimento, que viria a ser conhecida a partir do início dos anos 1960, inicialmente com artigos em revistas, até seu primeiro romance, O orfanato, publicado em 1965 e no qual o autor, tal como faria nos três próximos títulos, assume uma faceta fortemente autobiográfica a partir da forma como ele se via e definia: um filho bastardo, judeu obrigado a esconder sua ascendência, e homossexual (ou bissexual) em uma sociedade heteronormativa.

Nesses primeiros trabalhos, as narrativas se desenvolvem em Hamburgo, sendo o lado marginal da cidade em reconstrução no pós-guerra o que mais interessa ao escritor. Die Palette, por exemplo, seu segundo romance, é também o nome do bar underground frequentado por ele e pela comunidade gay, situado em uma área de intensa boemia e alta prostituição. Entrevistas com habitués do estabelecimento, parte de seu processo de observação como etnólogo, são essenciais para a composição da história.

Mas Die Palette e a ascensão que o livro trouxe ao autor são também reflexo de duas personas: uma é Hubert Fichte, tal como um beatnik, figura da mesma marginalidade que o interessa explorar e revelar; a outra é o pensador que com enorme facilidade se desloca do subúrbio ao centro para integrar uma intelectualidade influente, ainda que pouco ou nada transgressora, e da qual ele também era severo crítico.

RIO-SALVADOR-SÃO LUÍS
Eram vários os fatores que impulsionaram a vinda de Fichte ao Brasil. Em primeiro lugar, lhe interessava enormemente as culturas africanas e as diásporas, tal como a política e a economia que se estabeleciam em torno da pobreza a da exploração. E, dessa forma, a terra brasilis era um prato cheio para o estudo da etnologia e para travar contatos com outros antropólogos e escritores, assim como para vivenciar um turismo que muito o interessava: o sexual. “Creio que a ideia de ‘caçação’ sexual o atravesse, de certo modo, graças ao estado de coisas em seu país durante sua infância e adolescência, bem como também o impulsionasse ao movimento oposto, de uma autoafirmação e uma pulsão indômita de viver o seu desejo. Explosão trata também de gozo, desse arrebatamento irreprimível que traz o autor às terras brasileiras”, opina Luiza Brandino, da editora Hedra, e responsável pela revisão do livro.

Quando chegou ao Rio de Janeiro, o Brasil era um país que amargava já quatro anos de ditadura militar, o famigerado AI-5 vigorava há dois meses e as conhecidas favelas se expandiam exponencialmente pela Cidade Maravilhosa. Na figura de Jäcki, assim ele escreve: “Essa era Copacabana – uma rua principal entupida, cheia de fumaça de escapamento, que tinha o nome da Virgem Maria, africanos nus e molhados, índios nus e brilhosos, portugueses nus e cobertos de pérolas de suor, microssungas e fios-dentais estufados, pranchas de surfe na neblina azul, negra. Entre os ônibus uivava a canção de um epígono de Aznavour, cantando a sinceridade e a floresta virgem”.

Aqui também Fichte vai aos opostos. Na primeira parte de Explosão – Romance da etnologia, o leitor acompanha um personagem que, hospedado no luxuoso Copacabana Palace, ora está fazendo uma entrevista na casa de quem ele chama de “mestre de Utopópolis” (referência ao arquiteto Oscar Niemeyer e à cidade de Brasília), ora está no banheiro da Central do Brasil, indo com garotos de programa a hotéis de viração, ou “caçando” em cinemas da área central. Enquanto isso, Irma, a figura ficcionalizada de Leonore Mau, atravessa a cidade registrando as peculiaridades do que vê com suas lentes.

O livro, publicado postumamente, em 1993, engloba três passagens de Fichte pelo Brasil: a primeira, mencionada acima, em 1969; a segunda, uma longa estada entre 1971 e 1972, em Salvador; e uma terceira, entre 1980 e 1982, em São Luís, no Maranhão, e cidades do norte. Não se pode esperar um romance harmonioso e linguisticamente convencional. Pelo contrário, Fichte rejeita as normas tanto da escrita objetiva quanto da escrita poética. É dessa forma que compõe um mosaico translúcido, o qual exige do leitor um acompanhamento atento dos pormenores nos caminhos de Jäcki, na sua descoberta de um país preconceituoso, com uma polícia extremamente violenta e minorias sociais abandonadas à própria sorte. É também a nação que faz Fichte experenciar os ritos religiosos do candomblé, experiência que irá afetar profundamente seus estudos, resultando, em 1976, na publicação de Xango. Die afroamerikanischen Religionen II. Bahia. Haiti. Trinidad.

Explosão tem, entre outros méritos, o de ser uma grande interpretação do Brasil, que mostra como continuamos os mesmos, como o Brasil continua o mesmo, em tantos aspectos e depois de tantos anos. Foi surpreendente para mim traduzir um Fichte que aborda inclusive o processo de eliminação sistemática das favelas horizontais da Zona Sul no Rio de Janeiro, tema que configura o centro histórico e sociológico do meu romance A casa cai, publicado pela Companhia das Letras em 2015”, ressalta o escritor e crítico literário Marcelo Backes, responsável pela tradução do livro.


EXPOSIÇÃO E REDESCOBERTA
Além do livro, Implosão: trans(relacion)ando, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, na capital carioca, é uma das maneiras de se descobrir e redescobrir Hubert Fichte. No caso da mostra, essa descoberta é pelo olhar de seis artistas e de um coletivo, todos convidados pelos curadores Amilcar Packer e Max Jorge Hinderer Cruz. Ayrson Heráclito, da Bahia, Letícia Barreto, de São Paulo, e Negro Leo, do Maranhão, entre outros, se debruçaram sobre a obra do etnólogo alemão para comporem trabalhos que vão da fotografia a vídeos-performances, pinturas e instalações.

Em um vídeo de seis minutos, Heráclito, por exemplo, promove uma espécie de deriva noturna por Salvador, levando o espectador pela cena underground soteropolitana, a qual foi frequentada por Fichte. “Me impressiona sua relação com a religiosidade, com o candomblé, uma visão muito crua, muito desnudada de tudo. Funciona também como um contradiscurso que nenhum outro antropólogo que esteve na Bahia naquele período abordou de forma tão específica, que foi adentrar por esse mundo subterrâneo dos cinemas, dos espaços de ‘caçação’ homossexual, e também tentar invadir a privacidade e revelar os segredos do candomblé”, diz o artista, impactado pela visão do antropólogo.


O HOJE
Em 2017, o que na opinião dos entrevistados parece ser o eixo mais forte do trabalho de Hubert Fichte a partir de sua passagem pelo Brasil é quanto ele continua contemporâneo e claro. “Além da qualidade poética, há um aspecto libertário que certamente tem muito a dizer em tempos nos quais as pessoas se comportam de modo cada vez mais totalitário, religiosa e moralmente falando, também e sobretudo no Brasil, que é o assunto do qual nos devemos ocupar com 200 pulgas atrás da orelha no momento”, reforça Marcelo Backes.

A opinião é corroborada por Robin Mallick, diretor do Goethe-Institut Rio de Janeiro e apoiador da exposição. “Ao longo de suas visitas ao Brasil durante a ditadura militar, ele testemunhou a censura prévia aos meios de comunicação e às artes em geral. Por um lado, o contexto atual é muito diferente, de democracia e com a liberdade de expressão garantida pela Constituição. No entanto, as artes e os artistas no Brasil estão confrontados por uma onda conservadora que está questionando a validade desses valores essenciais.”

Se antes era um nome controverso, o etnólogo é hoje “figura histórica e um tópico de investigação na cultura e antropologia alemã”, como ressalta Mallick. “Ele era muito crítico com a antropologia ou a etnologia, mas pesquisou as disciplinas e seus métodos porque ele também viu os limites da subjetividade poética – por isso, criticou um através do outro, desenvolvendo um conceito semelhante ao que hoje se chama pesquisa artística”, finaliza Diederichsen.

Falecido em 1986, com 51 anos, em decorrência de complicações causadas pelo vírus da aids, Hubert Fichte é apontado como um dos precursores dos estudos sobre gênero e sobre pós-colonização. Sem poupar ninguém, nem a si próprio, fez do seu objeto de estudo o modo de se chegar às camadas mais profundas de si.