Pela primeira vez vou tentar escrever sobre você, querida amiga, que vive dentro de mim, eu que também não viverei para sempre, e que quando partir você partirá novamente – você partirá a cada vez que o coração de quem te ama deixar essa Terra, em busca de você, e viverá a cada vez que alguém amorosamente pensar em você. Ontem mesmo estivemos juntas em sonhos. É impressionante como na mais etérea das energias psíquicas, o sonho, seja justamente nele que o corpo de quem se ausentou se faça presente e assim possamos resgatar minimamente a alegria do encontro. Débora. Debinha. Binha. Nossas famílias, sem se conhecerem, nos matricularam na mesma escola. A escola um dia nos colocou na mesma turma. Tínhamos 5 anos. Nunca mais nos separamos. Nossas mães ficaram próximas, mas não se tornaram grandes amigas. Seus irmãos e minhas irmãs não saíam juntos. Convivemos por insistência nossa e éramos chamadas de cola e pincel. Dividíamos tudo, experiências e sapatos. Emprestávamos uma para a outra um pé dos nossos sapatos. O dela tinha saltinho, o meu era estilo boneca, uma amava o sapato da outra. Para que nossas mães não brigassem com a gente, eu dava o pé direito do meu sapato boneca para ela, ela me dava o pé direito do de saltinho dela, e íamos para casa mancando. Levávamos bronca. Trocar as coisas sempre fez parte da mística da nossa grande amizade, que durou 50 anos. Tia Berta mimou a filha caçula, única menina, depois de dois filhos homens. Eu, filha do meio, com duas irmãs nas pontas, fui criada sem os supérfluos, gênero de primeira necessidade para uma garota. Então, eu dava a ela as minhas poesias, e ela me emprestava suas roupas lindas, que, às vezes, eu perdia. Sim, esquecia no clube, na casa de alguém, não sei como ela suportava isso. Lembro de uma bata indiana preta e bordada que eu adorava, essa se eu perdesse... Aniversário de um colega de turma. Estávamos no ginásio. Já pensou se eu pudesse ir com a bata? O menino que eu queria namorar me pediria em casamento! Mas não seria de bom tom tia Berta me ver saindo com a roupa, dado o meu histórico disciplinar. No dia da festa, estávamos juntas na casa dela, eu com a minha roupa normal, ela toda bonita, então nos despedimos: “Tchau, mãe”, “tchau, tia”, “tchau, se cuidem” (já andávamos sozinhas pelo bairro). Débora com a sua pequena bolsa, eu com a minha mochilinha. Entramos no elevador. Ela apertou o botão que fazia o elevador parar entre um andar e outro. Rapidamente, tirei a minha blusa, ela tirou a bata toda amarfanhada da bolsa, eu dei a ela a minha blusa, ela me deu a bata, vesti a bata, ela colocou a minha blusa dentro da bolsa dela, e destravou o elevador. E lá fomos nós para a festa, eu me sentindo a garota mais linda do mundo e ela feliz em me ver feliz. Era assim. Uma não podia estar feliz sem que a outra não estivesse também. Quando engravidei, como dizer a ela, que vinha há anos tentando engravidar? “Alô?” “Oi, Binha.” “Oi, Clá.” “Tenho uma notícia pra te dar. Você vai ficar muito feliz, e triste ao mesmo tempo.” Silêncio. “Já sei, você está grávida.” E choramos, cúmplices, como estou chorando agora. Binha, conta para sua mãe, enquanto me recupero, a bata preta nunca perdi. “É verdade, mãe, a bata preta ela nunca perdeu.” Débora foi a primeira amiga a ler meus textos, a conhecer minhas angústias, meus amores, a ler meus pensamentos. Suportou valentemente meus porres na adolescência, e meus sumiços da fase adulta. Eram pequenos sumiços, mas, como nos falávamos semanalmente, era estranho quando ficávamos três, quatro meses sem nos falar. “Amigas da vida inteira”, como ela gostava de dizer. Viu todas as peças que fiz. Era tal a atmosfera entre nós que Clá e Binha, ou Binha e Clá, se tornou uma espécie de senha mágica. Estreia de uma peça, digo à produção, em cima da hora: “Não esqueçam os convites da Binha e da família dela”. “Clarice, ela vai ter de vir outro dia, tudo esgotado.” Bastava eu dizer: “É a Binha”. Os convites apareciam. Ela, psicanalista, carioca que virou paulista ao conhecer em SP o amor de sua vida, com quem viveu 25 anos em um casamento que, se não lhe trouxe um filho biológico, lhe deu dois meninos que a chamaram de mãe a vida toda e a amaram verdadeiramente. Quando sabia que eu estava chegando, mandava arrumar o quarto de hóspedes e comprar Matte Leão, vício carioca. “Dona Débora, onde vou comprar Matte Leão em SP a essa hora?” “É a Clá”. O Matte Leão aparecia. Talvez essa senha pudesse interromper uma guerra nuclear. Donald Trump vai apertar o botão fatal, toca o telefone. “Who the fuck is calling me now?!?. “Binha and Clá.” “Oh!, of course. Hello?” E a vida prossegue. O erotismo entre nós rolou mais de forma inconsciente do que consciente. Cada uma teve suas histórias desde cedo com os garotos, e, apesar do medo de nossas mães de que nos tornássemos um casal – lembro que fomos proibidas de tomar banho juntas lá pelos 11 anos –, depois de um tempo todo mundo relaxou. Inexplicavelmente, até, eu diria, isso nunca foi uma questão crucial entre nós. Adultas, conversávamos. A amizade é um aspecto do amor. Não que não envolva sexo, tudo envolve sexo, a vida é erótica, mas nem sempre esse sexo precisa necessariamente se consumar na cama. Eu não sei se Deus existe. Estou esperando a Binha me dizer. Amizade existe. E, como Deus, é eterna.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E DEDICA ESTE TEXTO A TODOS QUE TÊM OU TIVERAM UM GRANDE AMIGO NA VIDA.