Por pouco Torquato Neto (1944-1972) não entrou para o macabro clube dos poetas do rock que deixaram a vida aos 27 anos: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain, Janis Joplin, entre outros. Quando decidiu colocar fim a sua própria vida, inalando gás em seu apartamento no Rio de Janeiro, havia acabado de completar 28 anos. O poeta de Teresina (PI), um herói romântico trágico, tinha sina própria a cumprir.


Torquato foi um dos personagens determinantes da contracultura brasileira nos anos 1960. Artista multimídia em uma época em que a palavra nem sequer existia, transitou pela literatura, música e cinema, construindo uma obra tão original e inventiva quanto esparsa. É justamente a tentativa de resgatar seu trabalho que move uma série de lançamentos e eventos com seu nome pelo país. Quarenta e cinco anos após sua morte, um dos idealizadores do tropicalismo passa por uma revisão completa. “Devemos ler Torquato hoje porque mais do que nunca precisamos de mentes provocadoras, avessas a qualquer autoritarismo e abertas a experimentações na vida, na arte, na linguagem. Torquato é um mito da contracultura e, como tal, continua despertando o interesse de cada nova geração inconformista e anticonvencional”, opina o ensaísta, crítico literário e poeta Italo Moriconi, responsável pela seleção e organização de Torquato Neto: Essencial – O poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia, antologia poética do artista que será lançada neste mês pela editora Autêntica.

Há anos na batalha para conseguir publicar o poeta piauiense, a editora Maria Amélia Mello finalmente conseguiu levar o trabalho adiante e deixou a responsabilidade da seleção para Italo. Quando era coordenadora do Centro de Cultura Alternativa do Rio de Janeiro e estava fazendo um trabalho de coletar e preservar a memória das publicações dos chamados “marginais” da década de 1970 e 1980, ela percebeu o impacto que Torquato tinha nesses artistas. “Ele sempre atraiu o interesse dos mais jovens, era comentado nas mesas de bar. Desde então, venho tentando editar sua obra em livro, e agora consegui”, afirma ela, que também instituiu, naquela época, o Prêmio Torquato Neto para ensaios e, em 1985, chegou a reunir sua obra em um disco de vinil.

Esse fascínio que o criador exerce até hoje, sua figura mítica “maldita”, tem a ver com a perene atualidade de sua obra, de acordo com George Mendes, primo e curador do acervo pessoal do poeta. “Embora tenha partido jovem, e de forma trágica, sua obra mantém um vigor surpreendente e a curiosidade dos mais jovens só aumenta. Ele tinha uma qualidade impressionante. Seu estilo é inigualável e o uso das suas múltiplas expressões parece não ter fim. Muita gente permanece querendo ler, ouvir, falar, escrever tendo Torquato como referência. Você lê Torquato hoje e pode apostar na sua extrema atualidade”, opina.

Mendes, contudo, gosta de reforçar que a aura um tanto soturna que ronda o artista não corresponde ao que de fato ele era. “Sua arte era solar, vibrante, enquanto a imagem pública que ficou foi soturna, em preto e branco. O mito que se formou também do poeta suicida, jovem, contribuiu muito para isso”, diz.

Torquato também será homenageado em eventos literários este ano. Um deles é a 12ª Balada Literária, que prepara atividades em Teresina, Salvador e São Paulo. “Estive em Teresina com George Mendes, o primo dele. E ele me mostrando o acervo do Torquato. Aí, da visita ao acervo, fui visitar o túmulo do Torquato no cemitério no centro de Teresina. Fiquei ali, pensando em honrar a memória desse grande artista. É o que estou tentando humildemente fazer agora”, conta o escritor Marcelino Freire, idealizador e organizador da Balada.

O evento, aliás, se encerra no dia 12 deste mês com o documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando, sobre o artista. “O que nos levou a fazer esse filme é o fato de ele ser uma figura muito enigmática e, ao mesmo tempo que é reconhecido, é pouco conhecido. Sua poesia se expande em várias direções, com várias formas de linguagem e tem uma força enorme nesse momento que vivemos hoje, marcado por tanto obscurantismo, tanta caretice, por uma onda conservadora”, destaca Ades. Para o cineasta, a principal descoberta durante o processo de feitura do filme foi constatar que o poeta piauiense não tratava vida e morte como uma dicotomia. “Para ele, não eram coisas opostas. A grande força de sua poesia está pautada nisso.”

Torquato Neto sempre teve o espírito inquieto. Artífice do tropicalismo, perdeu o interesse pelo movimento assim que seus colegas Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e companhia explodiram com o sucesso Brasil afora. Interessado na sétima arte, se aproximou da turma do cinema novo como ator e produtor. Foi crítico musical, letrista de música e cronista. Apesar de tudo, nunca ficou para colher os louros. Criava e partia para a próxima. Como bem disse o poeta Augusto de Campos, Torquato Neto sempre “deu as costas ao sol”.

“Sua importância vem do confronto que ele estabelece com a injustiça, sobretudo. É um denunciador, um ícone da resistência poética. Um dos grandes nomes do inconformismo social. Viveu em uma era de exceções, auge da ditadura, foi exilado. Sempre esteve na linha de frente, em passeatas, atividades na imprensa. É um combatente”, explica o biógrafo Toninho Vaz, autor de A biografia de Torquato Neto (Editora Nossa Cultura).


A relevância literária do poeta parece ser também cada vez mais inquestionável do ponto de vista da crítica, e isso deve ser definitivamente consolidado com a maior circulação de sua obra em livro. Ele usou a poesia tanto quanto instrumento lírico quanto político, refletindo as angústias de sua geração por meio de uma linguagem inventiva e de ruptura. “Sua linguagem poética continuamente aproveita e reaproveita a memória de versos e textos dos grandes do modernismo brasileiro, como Vinicius e Drummond, assim como canibaliza a poesia popular, por um lado, e canibaliza o pop, por outro”, define Moriconi.

OBRA FRAGMENTADA
Torquato oferece uma dificuldade adicional para quem agora tenta resgatar seu material: sua obra é espalhada e carece de registros. Mendes explica que seu primo viveu e construiu sua obra poética em uma década, dos 18 aos 28 anos. Quando morreu, deixou uma esposa, Ana Maria Silva de Araújo Duarte, e um filho de 2 anos, Thiago Nunes. Sua família enfrentou dificuldades com a ditadura militar. Por 38 anos, sua viúva, falecida em 2016, tratou do acervo. Aos poucos foi publicando aquilo que considerou, juntamente com amigos mais chegados – Waly Salomão, Oscar Ramos, Luciano Figueiredo –, o que era mais relevante e melhor acabado. O primeiro livro que saiu, no ano seguinte ao falecimento do primeiro marido, foi Os últimos dias de Paupéria.

O curador revela ainda que durante um tempo, apesar de ter tudo sob seus cuidados, a viúva de Torquato chegou a querer fazê-lo acreditar que havia queimado tudo. Felizmente não foi assim. “No acervo encontramos letras de músicas, poemas acabados e inacabados, postais, pôsteres, fotografias, originais de matérias de jornais, discos, livros, cartas, cadernos de anotações, diários. Hoje tudo está estudado, classificado, ordenado em pastas e digitalizado para ser publicado no site oficial do poeta”, conta.

Moriconi, por sua vez, focou a seleção de textos para organizar a nova antologia de uma maneira que permitisse ao público mais jovem perceber com clareza o “teor de beleza inteligente e o sentido de seu gesto estético, que inclui, claro, a contingência de seu suicídio no final. Mas não é o suicídio que orienta minha visão, e sim a impressionante energia vital que essa obra possui”, ressalta.

Para Maria Amélia, o importante é editar uma espécie de “Torquato essencial”, que privilegie uma nova geração de leitores com uma visão clara de sua obra, para que possam identificar que muitas coisas que são conhecidas são de sua autoria e nem todos sabem. “Torquato tinha essa inquietude, essa pressa de viver, era acelerado intelectualmente, uma sensibilidade incrível. Era um pensador, um talento. Há muito espaço para disseminar sua obra”, avalia a editora.

Se Torquato, em vida, preferia mesmo andar na sombra, certamente os devedores de sua obra, os inúmeros artistas que ele influenciou, têm a missão de tirá-lo de lá. “Talvez o maior referencial para Torquato, a partir de um certo ponto, tenha sido mesmo a poesia de Oswald de Andrade. Nesse sentido, ele é um precursor da poesia marginal. Existe uma linha de transmissão entre a revista contracultural Navilouca, produzida por Torquato e Waly, e a poesia marginal carioca dos anos 1970, corporificada no poeta Chacal e no grupo Nuvem Cigana”, diz Moriconi.

“Tudo é Torquato. O Caetano é Torquato. Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Jards Macalé. Todos estão impregnados do Torquato. A postura desses artistas, o que nos trazem com sua arte, tudo se deve muito à presença luminosa dele. Essa geleia geral toda. Sem contar que celebrar o Torquato é dizer não ao que está aí, ‘temerariamente’ falando. Torquato resistia. Torquato era subversivo. Torquato é contra a corrente. Celebrar o Torquato agora é uma atitude política. Essa atitude será sempre atual. E necessária”, arremata Marcelino Freire. Já Vaz lembra que “tudo na história do poeta foi surpreendente. Não era uma pessoa comum. Uma figura polêmica, obscura, e teve uma importância cultural muito acentuada, especialmente naquele momento de regime autoritário, militar”, afirma.

Para estabelecer de vez sua obra como um marco nacional, Mendes ainda trabalha em novos projetos envolvendo o primo: dois CDs com inéditas; outro filme sobre o poeta; uma revista com a concepção adotada por Torquato na extinta Navilouca; e a renovação do site oficial já com o acervo digitalizado. E o mais difícil e mais desafiador, a Casa Torquato – Arte & Cultura, em Teresina.

Antes do trágico desfecho, Torquato enfrentou o alcoolismo, a depressão, o exílio em Londres e sofreu quatro internações. Ainda em vida, editou 34 letras, número que subiu para cem desde a sua morte, graças às pesquisas no acervo. Entre as muitas de sua autoria estão Aqui é o fim do mundo, Dia D e Geleia geral. Com Gilberto Gil compôs sucessos como Louvação e Domingou. Com Caetano Veloso, Mamãe coragem, Ai de mim, Copacabana, entre outras com diversos parceiros.

Quando se suicidou, deixou uma nota sucinta para os familiares. Porém, como epitáfio, nada é mais revelador do que os versos da letra de Pra dizer adeus, musicada por Edu Lobo: Adeus/vou pra não voltar/e onde quer que eu vá/sei que vou sozinho/tão sozinho amor/que nem é bom pensar/que eu não volto mais/desse meu caminho.