Era abril de 1987, o tempo já começava a esfriar na pequena cidade de Araras, no interior de São Paulo. O lugar andava movimentado por conta de um festival que reunia cantores e compositores da região, sagazmente batizado de Cantoria das Araras. Era a terceira e derradeira noite do evento. No camarim, João Lobo conversava e bebia com seus companheiros. Tratava-se de um poeta, idealista sem remédio, além de um dos organizadores da bagunça musical. Entre os convivas estava Hermeto Pascoal – o bruxo foi a grande atração da noite, incumbido de encerrar o evento com chave de ouro. Em dado momento, adentrou o recinto a jovem esposa de João, Zenáide. A mulher estava grávida do primeiro filho do casal. “É menina ou menino?”, quis saber Hermeto com seu jeito irreverente e cabeleira esvoaçante, enquanto passava a mão na barriga dela. “Menino”, respondeu Zenáide sem poder conter o sorriso. “Estou com um bom presságio. Vai ser músico!”, profetizou o mestre. “Deus o livre!”, pensou Zenáide.

Quatorze anos depois daquela festiva noite, lá ia Felipe Alves Ferreira da Silva para cima e para baixo carregando seu violão. Andava meio solitário e foi na música que achou a companhia perfeita para compartilhar da sua tristeza pubescente. “Gostava de cantar e falava sempre eufórico de um cantor ou de uma música que ele tinha ouvido, já dava para perceber que queria isso para sua vida”, relembra seu pai. Um ano mais tarde, o rebento já arriscava as primeiras composições autorais. Sábio Hermeto!

Hoje, beirando os 30 anos, Felipe Ferreira virou Phillip Long, um homem de olhar triste e que mantém a barba sempre por fazer. Já está no seu décimo segundo disco, em pouco mais de sete anos de carreira. A ideia para o nome veio depois de assistir ao filme melodramático (e põe melodramático nisso) Uma canção de amor para Bobby Long. “O personagem do Travolta nesse filme mexeu muito comigo. Eu tinha 17 ou 18, não lembro bem, e sempre me senti à margem de tudo”, conta à Revista da Cultura. O João, que responde às perguntas feitas por escrito em formato de poemas, meio que entrou na onda e deixou de ser Lobo para se internacionalizar e virar Wolf. Virou também fã de carteirinha do filho e, com 68 anos de idade, ostenta inegável pinta de galã, quase aos moldes do pai de Juan Antonio (vivido pelo ator Javier Bardem) em Vicky Cristina Barcelona. Não que eles rejeitem a alcunha Ferreira da Silva. Pelo contrário. Ambos têm muito orgulho dela, e João jura de pé junto que há parentesco com Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. “Tia Joaquina era prima de Lampião. Soube que ela tinha cartas e dizia que os Ferreira da Silva se dividiram. Muitos ficaram no Nordeste, outros desceram para o Sudeste”, garante.

O motivo para ter sido possível lançar tantos discos de qualidade em tão pouco tempo tem nome: Eduardo Kusdra, produtor com duas décadas de experiência no mercado musical, abriu as portas de seu home studio, o Estúdio Arte Master, para produzir, arranjar, gravar e mixar as canções do rapaz que um dia simplesmente apareceu por lá com o violão e um punhado de canções. Os dois se conheceram em 2010 e trabalham juntos desde então.

Kusdra não hesita em definir seu amigo e comparsa como um grande compositor e artista bastante verdadeiro. “O Phillip é capaz de escrever uma música de uma hora para outra sobre qualquer tema. Outro grande diferencial dele para mim está nas letras. Todas elas descrevem exatamente o que acontece na vida dele. A vida do Phillip está explicitamente descrita em suas músicas. Suas frustrações, seus medos, seus problemas, suas alegrias, seus amores. E quem convive com ele sabe que tudo aquilo é a mais pura verdade”, revela. “Música é minha identidade, meu caminho, não importa o que aconteça”, confirma o cantor.


MANIFESTO
Em seu mais recente disco, Phillip observa de perto as veias abertas da América Latina e canta um pouco as dores dessa terra e de seus habitantes. “A América Latina oferece ao mundo um jeito diferente de viver a vida, assim como os orientais. Uma pena que o Brasil ainda não tenha mergulhado de verdade nisso”, lamenta. Manifesto é o terceiro disco todo em português desde Sobre estar vivo, lançado em 2012 e que revelou ao mundo o cantor e compositor ararense.

Depois de uma carreira dedicada a cantar quase unicamente em inglês, o criador decidiu tentar cantar na língua dos Ferreira, não do Long. Foi com medo, mas foi. “A decisão de cantar em português veio de uma pressão das pessoas, que torciam o nariz para minha música no começo por conta de ser em inglês. Foi um desafio para mim.” A escolha parece ter sido certeira. Seu novo álbum por vezes soa como um abraço suave entre dois braços e seis cordas, fazendo lembrar nomes como Renato Texeira, Almir Sater e Zé Geraldo. Com letras que falam de problemas sociais, de solidão e da decepção com o atual modo de vida levado nas grandes cidades, Manifesto é um convite à reflexão sobre a vida em sociedade e seus mecanismos destrutivos e sem sentido.

Por ser um compositor angustiado, preocupado com os dilemas da juventude em um momento tão delicado, mergulhou e se inspirou no cansaço, na realidade de quem apanhou demais da cidade grande e precisa de um pouco de paz. É um trabalho composto com a intenção de ser o reflexo de nosso conturbado tempo, como ele mesmo explica. “Quis fazer um disco que mergulhasse na existência, que questionasse as relações de poder, que questionasse nossos valores, que sugerisse um caminho diferente para tudo que vivemos agora”, resume.

Antes da versão final, Manifesto foi gravado mais de cinco vezes. Detalhista que é, Phillip sempre achava que estava faltando ou sobrando alguma coisa. O Eduardo foi responsável por ajudar a subtrair ou somar certos elementos e também pelo elenco das gravações. Além dele mesmo nos violões e no contrabaixo, estão presentes Aramis (violino), Big Chico (gaita), Paulinho (sanfona), Daniel (baixo e tamborine) e Adair Torres (pedal steel).

BELCHIOR
Não passam despercebidas as referências sonoras e líricas a Belchior, falecido em abril deste ano, a quem Phillip considera uma espécie de guia. “Belchior salvou minha vida, cara. Para mim, ele é um xamã, não uma divindade. Um sujeito que atravessou a vida e lutou a boa luta. Tinha um faro para as questões do coração que nunca vi em nenhum outro. Belchior era, sobretudo, humano demais, e está aí a força da natureza dele.”

Em 2014, o site Scream & Yell lançou Ainda somos os mesmos, disco tributo ao cantor cearense. O jornalista e curador/produtor do projeto, Jorge Wagner, já conhecia as músicas de Phillip e o desejo de ver o rapaz cantando em sua língua materna fez com que o convidasse para gravar um dos carros-chefe do trabalho, a canção Como nossos pais, imortalizada na voz de Elis Regina. “Artisticamente, não sou tão fã dos muitos discos que ele gravou em inglês desde que o conheço. São bonitos, têm um ou outro grande momento, mas, no geral, acho um pouco genérico”, esclareceu, antes de prosseguir: “Em português, sua interpretação soa mais natural, mais própria, e as letras ganham em profundidade”. A versão que Long gravou continua a comover Jorge até hoje, três anos depois do lançamento.

“Sabe aquela história das dez mil horas de treino necessárias para se chegar à maestria em algo? É como vejo o trabalho do Phil. Ele trabalhou incansavelmente na sua música ao longo dos seis anos que o conheço, com acertos dentro da média aqui e ali. Hoje, quando ouço Manifesto, vejo que ele chegou lá”, concluiu o jornalista, que acredita ser este o melhor trabalho que ele já fez em anos.

O fato de ter sido mencionado na biografia do compositor de clássicos como Alucinação e Coração selvagem, escrita por Jotabê Medeiros, ajudou a fazer com que mais pessoas chegassem às canções de Phillip Long. Elas escutam o tributo e logo estão caçando suas músicas nas plataformas de streaming, curiosos para saber quem é o moço da voz magoada que aceitou tarefa tão perigosa. Se Hermeto foi um oráculo, Belch – como Phill chama carinhosamente o seu mentor – se tornou caminho, um fio condutor para sua música.

Apaziguado consigo mesmo em relação ao trabalho e satisfeito com o que fez em Manifesto, pela primeira vez Phillip Long não planeja outro álbum a ser lançado na velocidade da luz. “Cada disco significou algo para mim, mas hoje vejo que, durante todo esse tempo, eu estava aprendendo. Estava percorrendo um caminho que me levaria até o Manifesto”, explica com a humildade e o cansaço de quem já levou uns bons tapas da vida que lhe foi predestinada por aquela figura meio excêntrica, no pequeno camarim daquela pequena cidade do interior. “Estou livre. O que tiver de ser será, ou algo do tipo.”