Em 1950, o cientista Alan Turing (1912-1954) criava um experimento que entraria para a história. No famoso Teste de Turing, descrito no artigo Computing Machinery and Intelligence, o britânico propunha que um computador e um humano respondessem às mesmas perguntas. Caso o interrogador não conseguisse diferenciá-los, a máquina passava no teste, provando a sua inteligência. Com sua validade questionada pela comunidade científica de hoje, o experimento trouxe à tona uma indagação perturbadora: a máquina superará o ser humano? Passadas mais de cinco décadas, a questão ainda ressoa na esfera pública, principalmente devido à automação de atividades cotidianas, do transporte ao cuidado de idosos e crianças.

Contudo, não se trata de prever uma sociedade distópica, aos moldes das obras de Philip K. Dick (1928-1982) e Arthur C. Clarke (1917-2008). Segundo relatório da Federação Internacional de Robótica (FIR), de 2016 a 2019 serão vendidos cerca de 42 milhões de robôs de serviço, sendo 1,4 milhão dedicados à indústria.

Entusiasta dos avanços tecnológicos, o docente do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Edson Prestes, defende que a revolução robótica em curso trará muitos benefícios. Porém, a sociedade civil precisa estar atenta, zelando pela manutenção dos direitos humanos. “É consenso que robôs coexistirão com os homens nos mais variados ambientes, com as mais variadas funções. Eles impactarão certamente as nossas vidas. A questão que é necessária responder é: de que forma? Se desenvolvermos robôs sem qualquer noção ética, certamente o impacto será negativo”, ressalta.

O pesquisador integra a Global Initiative for Ethical Considerations in Artificial Intelligence and Autonomous Systems, iniciativa que reúne especialistas de todo o globo para debater os desafios da inteligência artificial. Essa discussão já toma forma com o desenvolvimento dos carros autônomos, que não necessitam de motorista. Nos últimos dez anos, empresas de tecnologia, como o Google e a Apple, e as tradicionais montadoras têm investido no setor, em uma corrida para chegar ao mercado. Mais do que um benefício para quem não gosta de guiar, a promessa é que esses veículos sejam mais seguros. Segundo estudo da consultoria McKinsey & Company, os carros autônomos poderiam reduzir em 90% o número de acidentes, os quais são causados nos dias de hoje principalmente por falhas humanas como excesso de velocidade, consumo de álcool e fadiga.

Imune às distrações, os novos automóveis trariam benefícios inegáveis. No entanto, há um fator que torna a equação um pouco mais complexa: o acaso. Como o veículo agirá se, por exemplo, um pedestre aparecer de repente em seu percurso? Atropelará a pessoa ou desviará para outro local pondo a vida do passageiro em risco? Segundo o gerente de estratégia da Ford, Luciano Driemeier, situações como essas exigiriam a criação de normas de conduta. “O código de ética é uma questão de toda a indústria. Precisamos de abordagens e discussões consistentes, e de todas as partes interessadas – incluindo governo, indústria automobilística, suprimentos, companhias de seguros e grupos de defesa dos consumidores”, afirma.

O físico, astrônomo e docente da universidade norte-americana Dartmouth College, Marcelo Gleiser, concorda que o padrão de conduta dos veículos autônomos deve ser discutido por grupos multidisciplinares, incluindo filósofos especializados em ética. “A boa notícia é que, dada a imparcialidade da máquina, muito provavelmente a melhor decisão será salvar o maior número de vidas possível”, comenta. Esse fator também é ressaltado pelo gerente de projetos da BMW, Henrique Miranda. Ele argumenta que, ao contrário do motorista, a máquina não age “por instinto de sobrevivência”. “O objetivo da tecnologia não é escolher entre vidas, mas proteger todas as vidas”, afirma.

Para que esses carros possam ser inseridos no mercado, também será necessário criar novas leis. Atualmente, por exemplo, ainda não há uma definição clara de quem seria responsabilizado – a empresa ou o passageiro – caso o veículo provoque um acidente. Recentemente, o governo alemão deu o primeiro passo nesse sentido, anunciando uma série de diretrizes relacionadas ao uso de carros autônomos. Outras nações devem seguir o exemplo, expandindo a regulamentação para outras áreas. “Diversos grupos em universidades já estão discutindo que regras deveriam guiar o trabalho dos robôs. Afinal, se conseguirmos de fato construir máquinas inteligentes, como garantir que elas seguirão nossas regras e não as delas?”, indaga Gleiser.


PERSPECTIVA HISTÓRICA
Muito antes de Charles Chaplin imortalizar suas críticas à mecanização do trabalho, o ser humano já colocava em xeque a relação entre ética e tecnologia. Segundo o professor da Faculdade de História da Universidade de São Paulo Gildo Magalhães, a automação está presente desde a Antiguidade, período no qual se encontram as primeiras menções a seres artificiais. Na mitologia grega, é famoso o exemplo de Talos, gigante de bronze criado pelo deus Hefesto para defender a Ilha de Creta. Também é um temor antigo a possibilidade de a tecnologia substituir o humano. “Foi o caso dos marinheiros que vandalizaram o primeiro protótipo de máquina a vapor de Denis Papin [1647-1713], no começo do século 18, ou dos ludistas [operários ingleses que, no século 19, quebravam as máquinas como forma de protesto]. Esse sentimento ressurge agora nas críticas à robotização das fábricas”, afirma.

Em recente estudo, a consultoria McKinsey divulgou que cerca de 50% dos postos de trabalho no Brasil poderiam ser automatizados, sendo o setor industrial o mais afetado. O desemprego é um dos impasses decorrentes dos avanços tecnológicos. O mercado conseguirá reintegrar os trabalhadores que perderem suas vagas? Para Gleiser, uma das saídas possíveis seria a criação de salários universais, baseados em impostos. Com essa medida, todas as pessoas receberiam regularmente um valor do Estado, independentemente de sua fonte de trabalho. “Isso pode garantir que os desempregados tenham uma vida digna”, pontua o físico. Vista como uma estratégia para amenizar as desigualdades, a ideia da renda mínima tem sido defendida por personalidades distintas como o fundador da Microsoft, Bill Gates.

Outros cientistas, por sua vez, alegam que a automação não provocará necessariamente desemprego em massa. Edson Prestes cita as empresas Amazon e BCA, “que aumentaram enormemente o número de seus robôs e em igual quantidade o número de seus empregados”. O pesquisador pontua ainda que, no caso dos trabalhadores manuais, as empresas devem criar programas de treinamento, de modo a direcioná-los a outras funções, mais modernas.

COMPANHEIROS DO COTIDIANO?
Antes restritos às fábricas, os robôs estão cada vez mais presentes no cotidiano. Segundo a Federação Internacional de Robótica, os autômatos já operam em ramos como entretenimento, limpeza de casas e cuidado de pessoas. O número de máquinas dedicadas ao setor de serviços já é muito maior do que o de robôs industriais. Personagens como a famosa Rosie, androide que realiza as tarefas domésticas na série animada Os Jetsons, criada nos anos 1960 e relançada 20 anos depois, já não parecem mais meros devaneios de ficção.

No entanto, especialistas alertam que é preciso levar em conta as consequências negativas da robotização. Ao serem submetidos aos cuidados de uma máquina, crianças e idosos podem, por exemplo, estabelecer relações de dependência emocional. Prestes afirma que questões como essa já estão sendo debatidas pelos órgãos de pesquisa, com o objetivo de garantir o bem-estar humano. “Os robôs são companhias perfeitas para auxiliar as pessoas em suas atividades diárias, mas não devem substituí-las”, afirma.

Mais do que a presença incontornável dos autômatos na sociedade contemporânea, torna-se urgente discutir a forma como eles serão empregados pelos usuários. “Hoje, as pessoas interagem em média com três robôs por semana. E, a cada dez pessoas, seis não se dão conta dessa interação. O preocupante é que essas pessoas que não percebem são as de mais baixa escolaridade”, pontua o cientista-chefe da IBM no Brasil, Fábio Gandour.

A discussão se torna ainda mais complexa com o emprego de robôs no setor de defesa. Em agosto, mais de 90 pessoas que atuam na área de inteligência artificial enviaram uma carta aberta à ONU sobre o perigo das armas autônomas. Caso desenvolvidas, essas máquinas poderiam disparar munição letal sem a intervenção de humanos, tendo a capacidade de localizar alvos e matá-los por conta própria. Segundo o documento, a criação desse tipo de arma já é viável tecnologicamente, sendo questão de tempo para chegar à maioria dos conflitos.

Magalhães defende que o caso das armas letais revela a tensão, presente ao longo de toda a história, entre avanço técnico e barbárie. “É uma decorrência inevitável que a potencialidade tanto para o bem quanto para o mal cresça de acordo com os conhecimentos que o homem adquire. Esse dilema aparece em personagens famosos da ficção como Frankenstein e Dr. Jekyll, médicos que perdem o controle de suas criaturas, metáforas de todos os perigos do progresso e da ciência.” Gandour concorda com o historiador, pontuando que “a tecnologia busca a utopia, mas às vezes acaba construindo a distopia”.

Para que essa realidade distópica não se concretize de vez, cabe à sociedade civil ficar atenta. “Se cientistas e engenheiros ajudam na produção de armas, são os políticos e os militares que têm o poder de decidir se vão ou não usá-las. Portanto, devemos pensar bem quando votamos”, afirma Gleiser. E é justamente essa capacidade de fazer escolhas e ponderar que distingue o humano, como pontua Magalhães: “A chamada inteligência artificial não conseguirá nos substituir, apesar de sua complexidade. O pensamento humano é mais do que isso, ele é capaz de explorar sentimentos que não se calculam. Nós ainda teremos a palavra final, que significa criar novas regras de decisão, imprevistas e imprevisíveis”.