O russo Varlam Chalámov (1907-1982) classificava cada um de seus contos como “uma bofetada no stalinismo”. O motivo é evidente: esteve em Kolimá, um dos mais brutais campos de prisioneiros da União Soviética, aonde o autor, apontado como “contrarrevolucionário trotskista”, então com 30 anos, foi levado para uma temporada que se estendeu de 1937 a 1951. Durante esse tempo, trabalhou em minas de ouro e carvão e em hospital, ficando ainda em seguida mais cinco anos no exílio, até que conseguisse voltar a Moscou. Ou seja, um sobrevivente.

Kolimá não era um pesadelo apenas por ter temperaturas que alcançavam 60 graus negativos ou pelo seu isolamento geográfico – extremo leste da Sibéria –, mas, principalmente, pelo abandono de qualquer traço humano dos que lá estavam. Trabalho até o limite da exaustão, violência física e psicológica, tudo foi sofrido por Chalámov, que foi capaz de transformar essa experiência em um relato de estilo singular e força literária arrebatadora nos seis volumes e mais de 2 mil páginas que compõem os Contos de Kolimá. “Chalámov forjou um modelo novo, único, que ele chama de documento: são contos não ficcionais, pois sempre baseados nos fatos que viveu, mesclados a reflexões de natureza histórico-filosófica e forjados pelo seu exímio talento artístico”, diz o editor Cide Piquet, responsável pela organização da obra do contista no Brasil, pela Editora 34.

Filho de um padre ortodoxo e estudante de Direito, o escritor foi preso pela primeira vez perto de completar 22 anos, por rodar em uma gráfica clandestina panfletos com o “testamento de Lênin”, texto considerado subversivo pelo regime. Passou três anos em campo de trabalho forçado na região dos Urais, para ser preso novamente aos 30 anos e seguir para Kolimá, onde iria encarar uma pena mais dura e longa. Acreditava que nada da experiência do Gulag (sigla em russo para Administração Geral dos Campos) poderia ser aproveitada pelo ser humano, mas dedicou o restante da sua existência a construir uma obra de resistência. “O campo é uma escola negativa para qualquer um, do primeiro ao último dia. O homem – seja ele chefe ou prisioneiro – não deve vê-lo. Mas, se o vê, deve dizer a verdade, por mais terrível que seja. Quanto a mim, decidi que dedicarei todo o resto da minha vida justamente a essa verdade”, escreveu.

Tradutor do quarto volume dos contos, Ensaios sobre o mundo do crime, Francisco Araújo acredita que Chalámov criou uma nova forma de expressão dentro da chamada “literatura do Gulag”, que tem como outro grande expoente Alexander Soljenítsin (1918-2008), prêmio Nobel de 1979, de quem Chalámov foi amigo e depois desafeto, por diferenças estéticas e éticas. “A força ética de Chalámov foi noutra direção. Ele se lança ao desafio da busca, tendo por princípio a ideia de que a nova forma que procurava não deveria evitar as asperezas que envolvem a partilha da experiência”, explica.

Ainda segundo Araújo, a ideia de que a qualquer momento podemos ficar entregues à bandidagem, à mercê da arbitrariedade, da lei do mais forte, é o alerta de Chalámov, que identifica a moral corrompida dos criminosos com o darwinismo social. “Diria que a importância de sua obra é nos provocar por todos os lados. Sua clarividência tanto abala a fé no homem quanto sugere a necessidade de algum idealismo em termos de justiça social”, completa.


O escritor russo era avesso a sutilezas em suas narrativas. Para ele, depois de Auschwitz e Kolimá, não havia mais espaço para a literatura que não fosse farpada e profundamente calcada na experiência do limite humano. Para a doutora Franziska Thun-Hohenstein, do Centro de Literatura e Cultura de Berlim, especialista em Chalámov e responsável por sua edição na Alemanha, do seu ponto de vista, a literatura dele tinha o dever de mostrar que o homem pode se tornar uma besta após três semanas vivendo nas condições inumanas dos campos de Kolimá. “Ele lutou para encontrar uma nova prosa que desse conta dessa experiência, um estilo forte e lacônico, com figuras sem passado e futuro, que só se movimentam no presente, como é a vida do campo”, afirma.

Segundo Araújo, a prosa do russo ultrapassa o testemunho para se inserir no que de melhor existe na prosa universal. “Não tenho dúvidas de que a prosa de Chalámov seja de grande valor sob todos os aspectos. Ele é um grande contista e um grande poeta. Eu me senti iluminado e provocado pela crueza de sua narrativa, e também agraciado pelo lirismo que, no caso dele, é quase inteiramente voltado para a natureza”, conta. Por outro lado, o autor procura se distanciar propositalmente dos incontornáveis gigantes russos do século 19, até mesmo de Dostoiévski (1821-1881), que vivenciou a experiência do cárcere. “Para ele, o realismo da literatura russa clássica estava ultrapassado. Ele disse que o romance estava morto. A tradição do romance europeu, com sua crença positiva na força da humanidade, não se encaixava necessariamente em sua visão de mundo. Ele não compartilhava com Dostoiévski a crença no povo russo”, explica Thun-Hohenstein.

A obra de Chalámov, por mais paradoxal que isso possa ser, é uma declaração de apego à vida, até mais do que somente um alerta pelo horror que o homem pode causar a outro homem. Assim como Primo Levi (1919-1987), sobrevivente de Auschwitz, ele reforça a fé na resistência humana e na capacidade de perdurar. “Sem dúvida, toda sua obra é um testemunho a favor da vida e uma denúncia contra o terror que o homem é capaz de impor a seus semelhantes. A importância de sua obra e de toda a chamada literatura de testemunho é enorme, pois serve como um alerta para a barbárie que resulta de todo tipo de totalitarismo, seja ele de esquerda ou de direita”, diz o editor Cide Piquet.

Ao finalmente voltar à vida civil, o autor se lançou com obstinação ao projeto de sua obra. Ficou conhecido como poeta e teve sua prosa organizada pela pesquisadora Irina Sirotínskaia, amiga e detentora dos direitos de publicação de seus livros. Graças a ela, seus relatos viram a luz do dia. No entanto, Varlam Chalámov morreu sem presenciar os seis volumes de Contos de Kolimá publicados na União Soviética, o que só ocorreu em 1989. No eco que seus textos transmitem até hoje, no entanto, residem a força e a fé com que se talham um grande artista e a convicção no poder da arte transformadora.