“A revolução explodiu como um suspiro longamente contido.” É assim que a Revolução Russa de outubro de 1917 é descrita pelo médico Iuri Jivago, herói criado pelo escritor Boris Pasternak (1890-1960) em seu romance Doutor Jivago, obra seminal para entender a revolução e a guerra civil que se seguiu a ela. Cem anos depois, entre uma infinidade de estudos, é quase um consenso que o acontecimento se equipara em importância à Revolução Francesa, com impacto determinante no mundo em que vivemos atualmente. A história já foi contada e recontada: o que começou como um ideal de igualdade e fim de privilégios tornou-se com o tempo um poder burocrático e autoritário, capaz de aterrorizar sua própria população com uma eficácia poucas vezes vista. No entanto, entre esse sonho profundamente arraigado no desejo de liberdade e a sufocação promovida pelo regime, o que restou?

É uma pergunta cuja resposta é difícil de encontrar, mas especialistas arriscam alguns caminhos. Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique e autor de A teoria da revolução no jovem Marx (Boitempo Editorial), acredita que o grande legado é a demonstração de que é possível suprimir o capitalismo e o poder das classes dominantes se a grande massa dos trabalhadores da cidade e do campo se mobiliza em torno de um projeto revolucionário. “A revolução foi um acontecimento demasiado importante, demasiado ligado aos interesses da humanidade, para ser esquecido, apesar do fracasso da tentativa. Sua herança estará presente em futuras tentativas desse tipo. A frase é uma citação de Immanuel Kant sobre a Revolução Francesa, escrita em 1798. Vale integralmente para a Revolução de Outubro de 1917”, afirma o cientista político, nascido no Brasil, mas radicado na França.


Angelo Segrillo, historiador da Universidade de São Paulo (USP), autor dos livros Os russos (Editora Contexto) e Rússia: Europa ou Ásia? (Editora Prismas), chama a atenção para a ênfase em políticas sociais, ao menos no início do regime. “O experimento soviético teve pontos positivos e negativos. Entre os positivos, mostrar que uma economia não capitalista e planejada poderia funcionar. Além disso, havia ênfase em políticas sociais mais que na mera busca de lucros, o que sensivelmente diminuiu a pobreza na Rússia”, explica.

Para Lenina Pomeranz, cientista social formada pela Universidade de São Paulo e doutoranda em planificação econômica pelo Instituto Plejanov de Moscou de Planificação da Economia Nacional, a resposta a essa questão é difícil, na medida em que seria preciso distinguir se o que se analisa é revolução enquanto movimento transformador de uma realidade social ou a experiência soviética enquanto resultado concreto dessa revolução. “Considerando a revolução no primeiro sentido, eu diria que a característica positiva que permanece é a da utopia por um mundo melhor e mais justo. Em termos do segundo sentido, o que fica é a sua lição histórica, as dificuldades com que se defrontou a utopia, e os acertos e erros cometidos no enfrentamento dessas dificuldades.”

Outro ponto que persiste, e que nasceu com a Revolução Russa, são as lutas de libertação que se seguiram a ela ao redor mundo. “Qualquer experiência que você venha a construir fora da estrutura do capitalismo vai se inspirar na trajetória da Rússia. Se quisermos entender o que está acontecendo na China, Cuba, Bolívia, qualquer país que busca criar alternativas à colonização de riquezas, em alguma medida temos de buscar referências na primeira e mais expressiva experiência”, afirma Diego Pautasso, doutor em ciências políticas e política internacional e professor de geografia no Colégio Militar de Porto Alegre. Segundo ele, outro aspecto de grande impacto está na maneira como a revolução se defrontou com três grandes discriminações do século 20: de gênero (basta ver que as mulheres tiveram papel muito importante, liderando greves), raça e classe. “Se analisarmos o mundo por volta dos anos 1910, período que antecede a revolução, há um movimento forte de confrontar isso, um movimento de cidadania, portador de direitos, trabalho, educação, saúde e habitação”, diz.


José Paulo Netto, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador do livro Curso livre Marx-Engels (Boitempo Editorial), acredita na herança da revolução como lição mais do que um exemplo. “Trata-se da lição segundo a qual não basta a supressão da propriedade privada dos principais meios de produção para a supressão da ordem burguesa. A lição de que o sujeito da transformação social profunda não é o partido, mas os trabalhadores, e de que este ser sujeito constrói-se sempre num processo autogestionário, ou seja, a emancipação do trabalho só pode ser obra dos trabalhadores. Apenas essa pode ser a base de uma democracia socialista”, explica.

A professora de línguas Natalia Shumakova, nascida em Kursk e vivendo no Brasil há cerca de dez anos, é da opinião de que, embora a revolução tenha deixado características marcantes no povo de sua nação natal, o seu desenrolar apenas atrasou o país. Ela chama a atenção também para o fato de que a chamada intelligentsia, os intelectuais, foram perseguidos, presos, fuzilados ou emigraram, por não serem bem-vistos pelos revolucionários. Isso teve um efeito negativo no desenvolvimento russo. “Foi uma etapa bastante difícil. Até agora, mesmo minha geração estando distante, ainda sente os efeitos e somos afetados”, afirma.


POR QUE A RÚSSIA?
Lênin (1870-1924) costumava dizer que a Rússia era o “elo mais fraco da cadeia imperialista”. Justamente por isso, uma revolução socialista mundial deveria começar em solo russo. Vários fatores, porém, convergiram para que justamente lá fosse o palco do fenômeno que abalou o mundo: a aspiração democrática contra a autocracia czarista, a luta dos camponeses pela terra, o desejo do povo e dos soldados de sair do massacre da Primeira Guerra Mundial e a luta de classes dos operários contra o capital – estava formado o caldo que explodiria na revolução. “Era um país em que o capitalismo estava mais cheio de contradições, um país que misturava modernidade na economia e atraso na política, onde as indústrias que havia eram muito concentradas devido ao capital estrangeiro, o que facilitava a política operária revolucionária”, afirma Segrillo.

Netto lembra que nem sempre situações revolucionárias se condensam e convertem em processos revolucionários exitosos. Na Rússia, particularidades nacionais propiciaram essa conversão: a revolução derrotada de 1905-1907, a desmoralização do corrupto e autocrático regime czarista e a existência de um partido liderado por um núcleo dirigente teoricamente qualificado.


Se a revolução, cercada de ideais, foi bem-sucedida, a manutenção do regime é controversa. Em termos de tempo, pode-se considerar um sucesso, já que o regime foi de 1917 a 1991. No entanto, o preço pago para mantê-lo é no mínimo contestável. Para os principais dirigentes bolcheviques, a começar por Lênin e Trótski (1879-1940), a grande esperança era a extensão internacional da revolução. Mas a morte do primeiro e a ascensão de Stálin (1878-1953) mudaram o panorama.

“Depois de 1924, o regime vai perdendo seu caráter revolucionário e acaba se tornando um poder burocrático, totalitário, que terminou exterminando, nos infames processos dos anos 1936-40, todos os líderes da Revolução de Outubro. A tentativa de reforma de Mikhail Gorbachev veio tarde demais, e o que sobrara da União Soviética desmoronou em 1991, abrindo caminho para a restauração do capitalismo”, explica Lowy.

Algumas vitórias explicam a duração do regime, como o crescimento econômico que redundou numa transformação estrutural importante e a industrialização de um país predominantemente agrícola em um período relativamente curto de tempo; a segurança econômica aos cidadãos propiciada pelo Estado, com garantia de emprego e renda, além dos serviços sociais, tendo de se ressaltar a transformação educacional pela qual passou a população e a relativa igualdade social – relativa porque havia evidentes privilégios para o alto escalão do partido.

Outros, por sua vez, explicam a derrocada. A ausência de liberdades, os expurgos, a violência da vigilância e da delação entre a população, a polícia secreta, a incapacidade da direção partidária em promover as mudanças necessárias na administração do sistema à medida que a economia e a sociedade avançavam. “Eu diria que o regime foi bem-sucedido em alguns aspectos e malsucedido em outros, concordando com vários historiadores do sistema soviético que sublinham a existência de pontos fortes e pontos fracos do sistema, uma montanha de realizações ao lado de uma montanha de crimes”, resume Pomeranz.

Muito se especula, inclusive, sobre a possibilidade de um evento dessa amplitude ocorrer novamente no mundo. No entanto, as características geopolíticas globais atuais tornam isso improvável. Para Löwy, as revoluções nunca se repetem. Sempre são diferentes e imprevisíveis, produto da criatividade popular e das tradições culturais de cada povo. “Não podem ser previstas, só podem ser objeto de uma aposta – no sentido de Pascal – de parte dos revolucionários. Só podemos arriscar uma previsão condicional: se não houver uma grande revolução antissistêmica, como a de 1917, o capitalismo conduzirá o planeta a uma catástrofe sem precedentes na história: mudança climática, o desastre ecológico”, diz.

De acordo com Netto, o que deve ocorrer de mais parecido ao movimento de 1917 é a intensificação das lutas setoriais. Ele acredita ainda que, sem o núcleo duro das camadas trabalhadoras, não há mudança substancial viável, assim como ocorreu anteriormente, embora não vislumbre isso a curto prazo. “Se constituírem instrumentos políticos que permitam a articulação de uma vontade política universalizante, então a perspectiva da revolução do século 21 pode ser uma perspectiva concreta”, afirma.

Já Pomeranz acredita que os movimentos populares no mundo de hoje são expressos de forma diferente. A luta de classes em que se baseou a Revolução Russa é conduzida pelos sindicatos, bastante enfraquecidos atualmente, porque o mundo do trabalho mudou. E segue mudando pela nova revolução tecnológica da informação. “Os movimentos se expressam na multiplicidade de organizações que os compõem. São mais ou menos abrangentes, dependendo do objeto que perseguem. Mas se estendem para as diferentes esferas da vida social, desde a defesa da sustentabilidade do planeta até os direitos humanos”, explica.

Segundo Pautasso, nada se equipara às Revoluções Francesa e Russa na conformação do que somos hoje como sociedade. Por isso, é difícil que exista algum movimento de tanta abrangência atualmente, até mesmo por conta da pulverização dos movimentos sociais e de vínculos corporativos.

De certo, é possível somente dizer que, com seus acertos e seus equívocos, a Revolução Russa é um dos momentos incontornáveis para entendermos nossa própria história enquanto civilização. A lição que ficou do embate entre a utopia e a realidade, entre o sonho inicial e o abuso posterior de um regime autoritário e violento segue atraindo estudiosos e ainda povoando a imaginação de muitos homens e mulheres ao redor do globo.