O livro Galáxias, de Haroldo de Campos, aumentou minha capacidade respiratória, minha resistência cardíaca, e fez com que eu alcançasse profundidades poéticas em apneia. Após a leitura, a insônia insana do desejo de escrever mordeu minh’alma. Sem ponto nem vírgula rabisquei um pequeno texto sobre uma das ruas de comércio de luxo de São Paulo à luz das galáxias apreendidas. “Que faço eu aqui nesse espaço escuro fantasiado de sol e lojas floridas de laços e panos e rendas restritas às folhas de verdes cifrões que finas esquinas de louças e louras que frágeis e ágeis paisagens de íntimas dores prescritas por cima das flores as grades de grifes o vácuo das tardes versáteis miragens vitrines oásis alqueires alcunhas valquírias azares orquídeas de azes valetes vorazes curingas que blefam em cruz o apreço que sentem e pagam o preço da mala de couro do rabo de ouro do ovo do raro avestruz”. Tal qual Zelig, de Woody Allen, se amo um autor, me inspiro em sua linguagem e sigo sonâmbula o amor que me inspirou. Não para ser aceita ou para me sentir segura como Zelig, o “camaleão humano”, mas por me sentir viva ao conscientizar maneiras de pensar que diferem da minha. É o corpo da atriz que escreve. O corpo que crê na linguagem. Dá sua cara à tapa, ama e se irmana e se experimenta na insana multiplicidade das expressões. Quando enceno Shakespeare, penso como Shakespeare. Quando enceno Brecht, penso como Brecht. Quando enceno Nelson Rodrigues, penso como Nelson Rodrigues. Ou melhor, acho que penso que penso. O diretor de teatro Amir Haddad diz que uma peça de teatro não é senão a tensão entre o pensamento do autor e o do ator. Talvez por isso tenha sido tão difícil encenar Buda, de minha autoria. Não sabia como estudar Buda. Não tinha distanciamento. Agora, mais madura, talvez eu saiba estudar meu pensamento como se Clarice fosse outra pessoa. A Clarice que escreve é outra pessoa. Tem insights que eu não tenho, vai além de mim. Preciso descobrir aos poucos como ela pensa e de que se nutre para escrever. Mas, à noite, quando eu e meu filho decidimos assistir a um filme na Netflix, tive vontade de formular tudo isso que escrevi acima de outra maneira. Explico: ele escolheu assistir a Fragmentado, filme de terror psicológico, dirigido por M. Night Shyamalan, com James McAvoy. Brevíssima sinopse: um psicopata sequestra três garotas e as mantém em cativeiro. Ele tem 23 personalidades diferentes, está em tratamento e, no fim, sua vigésima quarta personalidade, a fera, mata duas garotas, a terapeuta, e liberta a terceira ao descobrir que ela é pura, isto é, tão traumatizada pelos sofrimentos de infância quanto ele, a fera. Depois, a polícia o persegue, etc. Durante o filme, me perguntei: 1) por que pensei a escritora Clarice como outra pessoa?; 2) Ao pensar assim, estava de certa forma me fragmentando?; 3) De que maneira a linguagem nos confunde e nos influencia a pensarmos sobre nós como se fôssemos um somatório de personalidades doidas, nos amedrontando diante de nós mesmos?; 4) Como a própria linguagem pode nos tirar desse labirinto psíquico nos trazendo de volta a sensação de unidade? Relembrei Galáxias: “(...) mas o mar depois do mar depois do mar o mar ainda poliglauco polifosfóreo noturno agora sob estrelas extremas mas liso e negro como uma pele de fera um cetim de fera um macio de pantera o mar polipantera torcendo músculos lúbricos sob estrelas trêmulas o mar como um livro rigoroso e gratuito como esse livro onde ele é absoluto de azul esse livro que se folha e refolha que se dobra e desdobra nele pele sob pele pli selon pli o mar poliestentóreo também oceano maroceano soprando espondeus homéreos como uma verde bexiga de plástico enfunada o mar cor de urina sujo de salsugem e de marugem de negrugem e de ferrugem o mar mareado a água gorda do mar (...)”. Haroldo de Campos, ajudai-nos a perceber toda linguagem que nos limita a pensarmos em nós sem liberdade de linguagem; que nos limita a pensarmos em nós como sujeitos doentes. Chega dessa linguagem em que só existem duas opções: ou você é vítima ou você é algoz; ou você mata ou você morre – isso reforça a violência!!? Viva a linguagem que nos inscreve numa galáxia libertadora. Nada de errado em nos pensarmos como o outro. Mas é bom saber que linguagem e pensamento se irmanam na estrutura do ser e influenciam a maneira como produzimos e transmitimos conhecimentos sobre nós. Portanto, a Clarice que escreve não é outra pessoa, é a mesma Clarice, porque sou a policlarice, “(...) noturna sob estrelas extremas que se desdobra (...)”, sonhando arremessar-se em suas próprias galáxias. Clarice depois da Clarice depois da Clarice que se reescreve para expor complexidades abertas que pulsam aos quatro ventos na tentativa de irmanar linguagem, pensamento e liberdade e conectar incontáveis eus com possíveis outros eus sem hierárquicas distinções nem empecilhos para novas gramáticas.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E GOSTA DE OUVIR CIRCULADÔ DE FULÔ, DE CAETANO VELOSO, INSPIRADO EM UM FRAGMENTO DE GALÁXIAS.