Pica-pau, urubu, coruja, peixe, isca, cachorro, gato, rato, pomba, veado, bichos e bixas. Quem sabe essa fauna não está passando por aí agora. Quê? Como? Calma! A bicharada está junta e misturada na cidade e no som do novo álbum da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. Sim, depois de dois anos desde o lançamento de Mulher, o grupo acaba de lançar Bixa, que promete fazer os corpos mexerem, dançarem, poetizarem e, acima de tudo, pensarem.

Formado em 2011 por Assucena Assucena, Raquel Virgínia e Rafael Acerbi, o grupo se conheceu por um acaso do destino: os três estavam na mesma turma de história na Universidade de São Paulo. “Aconteceu muita coisa errada na vida de todo mundo para a gente acabar indo parar na mesma faculdade, no mesmo curso e na mesma sala. Era uma turma que gostava muito de discutir arte e cultura, então a gente já produzia muito desde o começo, sarau, festival de bandas”, revela Rafael Acerbi, a cozinha mineira da banda. A música foi de encontro certeiro no coração do trio, que se juntou para fazer o negócio virar coisa séria quando uma das grandes referências da banda faleceu: Amy Winehouse. “A gente começou a tocar junto para fazer uma homenagem a Amy. Depois de um tempo, eu e Raquel nos encontramos para ouvir Gal Costa e nos apaixonamos por ela. Foi uma fase de muita depressão, de entendimento de nossa identidade e de nosso reconhecimento no mundo e diante dele. Nesse sentido, Gal tirou a gente do fundo do poço, foi uma espécie de redenção para a arte, para o olhar artístico”, comenta Assucena Assucena, de Vitória da Conquista, o que a levou a ganhar o apelido de Bahia, assim como Raquel, que morou por bastante tempo em Salvador. Assim surgiu o nome As Bahias e a Cozinha Mineira, uma banda com grande inspiração no tropicalismo e no Clube da Esquina.

Desse fervilhar criativo e com as vocalistas Assucena e Raquel a compor em ritmo efervescente, não demorou para vir à tona o álbum Mulher, o qual apresentou a banda para o Brasil e abriu espaço e lugar de fala para que as duas pudessem expressar suas identidades de mulheres trans para o país. A crítica se encantou com a sonoridade setentista da banda e o público descobriu mais um talento nessa nova cena da MPB, mostrando muito bem a cara da nossa música: bem-feita, sofisticada, diversificada, plural e que se ouve com o corpo inteiro. Era o momento do grupo fazer sua transição do underground para o mainstream. “A gente produziu o álbum Mulher, que apareceu na cena de maneira muito inesperada. Desde esse lançamento para cá, foram mais de 120 shows. Então, essa experiência da estrada, de sair dos palcos pequenos, para abrir show da Gal Costa, da Alcione, estar em grandes festivais, tudo isso mudou a perspectiva de como nós, artistas independentes, nos entendemos nesse cenário”, explica Rafael. .

Desse entendimento veio também a necessidade da banda se profissionalizar, abrir escritório, fazer sua própria gestão e se preocupar com o mercado. “Com Bixa veio todo um amadurecimento, que foi colhido aos trancos e barrancos com Mulher, viajando pelo Brasil, aprendendo muita coisa, entendendo o que significa o mercado, como se colocar nesse lugar, se blindar, se defender, ser estratégico. Entender todas as dinâmicas nas quais o artista pode trabalhar e ser criativo, porque é uma dádiva poder viajar, trabalhar, se sustentar com arte e ainda ser livre para pensar e fazer um álbum como Bixa, que para nós é um dos maiores orgulhos, porque é um disco muito livre, em que a gente usou toda liberdade de criação.”

A FAUNA
Enquanto Mulher tomava forma e mostrava a cara e a sonoridade com que a banda queria se apresentar para o Brasil, também surgia nas composições das artistas um grande elenco de animais que evocam a natureza humana. Foi quando Bixa veio à luz. “Foi um processo bastante orgânico. Estávamos fazendo Mulher e ele [o álbum Bixa] foi nascendo conceitualmente logo em seguida. Houve uma transição orgânica para outro raciocínio”, explica Raquel. O álbum trouxe toda uma fauna que metaforiza a vida da cidade grande, a vida do ser humano e a distância das pessoas em relação à natureza. O nome do trabalho foi inspirado pelo álbum Bicho, de Caetano Veloso e que celebra 40 anos em 2017. “O disco chama Bixa no sentido polissêmico, no sentido de bicho mesmo, no sentido de homenagear a natureza e na dignificação do ‘a’ como universal. O xis ali colocado é transgressão da linguagem, é transgressão do signo da palavra. A gente transgrediu o gênero, então, está impregnado na própria palavra o xis”, detalha Assucena.


Com uma pegada pop e muito dançante, o álbum, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, abraça referências desde Michael Jackson e Beyoncé até Caetano Veloso, Gal, Criolo e tantos outros. Além dessa mistura, o trabalho mostra em cada uma das canções uma ironia ácida, rápida e poética a respeito de nossa humanidade e de como nós estamos, em nome do progresso, nos distanciando de nossa natureza e nos tornando cada vez menos humanos. “A ideia era trazer uma discussão cheia de ironias e sarcasmo a respeito do que a gente entende como natureza, o que a gente entende como ser humano, e de como a gente entende que, em uma modernidade como a nossa, conseguimos nos separar dessa primeira natureza. Você já não se enxerga como parte constitutiva de um espaço uno. Bixa traz essa discussão sobre humanidade, sobre modernidade, sobre cidades”, expõe Rafael.

Com o nome do disco, também não fica de fora a evocação do termo usado pejorativamente contra a comunidade LGBT, o que só faz aumentar a importância desse lançamento em meio a um momento tão conturbado em relação aos direitos civis. “Lançar algo com o nome bixa é empoderamento, é você transgredir o próprio termo que te encarava como uma desgraça social, como uma mazela social, é você se apropriar daquilo que te matava. Do que foi feito para te invisibilizar, você pega e diz ‘aquilo que não me mata, meu bem, me fortalece’”, esclarece Assucena, que completa: “Ser bixa é ser gente. A ideia era normatizar, tratar bicho com nome bixa. Porque é a mesma coisa: é luta, é sobrevivência, é resistência, é alegria também”.

A FLORA
“O ser humano é um ser político e social, até se formos tocar bolero, serão duas travestis cantando bolero. Então, existe aí um corpo político que tem voz e esse corpo político fala sobre esses aspectos da identidade. Não necessariamente é uma música de protesto a música política”, enfatiza Assucena, que com o grupo mantém uma militância lírica, como os integrantes gostam de dizer, e a consciência de trazer posicionamentos já ao subir no palco.

Se Gal Costa salvou as vocalistas do fundo do poço, é na música que elas procuram levar o refúgio para quem as escuta. A musicalidade das integrantes é a grande prioridade de suas vidas, mas elas sabem a importância de estarem ocupando os espaços e de darem voz a uma discussão a respeito da diversidade, da igualdade, do respeito e da tolerância. “Acho que tem de ter uma apropriação desse lugar, até para nos colocarmos em lugar de dignidade”, comenta Raquel, que se preocupa quanto ao seu papel de representatividade para o público. “Acho que o bom é não endeusar a figura de ninguém, ninguém tem esse poder. Isso pode ser um grande caldeirão de decepções. Sempre que as pessoas vêm me procurar, eu jogo na arte. O que está salvando essas pessoas é a minha arte.” Raquel diz isso porque ela e Assucena já receberam diversas mensagens de agradecimento de pessoas que chegaram a pensar em suicídio ou que não estavam bem consigo mesmas, mas que mudaram sua visão de vida depois de conhecerem as duas artistas. “Uma referência tem de se transformar em empoderamento, e aí a pessoa se transformar em referência dela mesma”, enfatiza Assucena. “Amanhã posso mudar de ideia, posso morrer, mas minha arte está aí, é o meu legado. É um legado de humanidade para a humanidade.”