Para muitos, vender livros é apenas um tipo de comércio como qualquer outro: você entra em uma loja, escolhe o que vai levar, paga pelo produto e ponto final. Acaba aí a experiência de compra. Quem pensa dessa forma não conhece a Livraria Cultura, que neste mês de setembro completa 70 anos. A cultuada marca começou sua história quando Eva Herz, mãe de Pedro Herz, atual Presidente do Conselho Administrativo da rede, teve a ideia de abrir um serviço de aluguel de livros em sua própria casa, no bairro dos Jardins, em São Paulo, e hoje oferece ao seu público, espalhado por todo o Brasil, uma jornada cultural completa, que vai desde o primeiro momento em que um livro é folheado, passando pela arquitetura das lojas, seu imenso acervo, seus teatros e auditórios, chegando ao café e seus eventos gratuitos.
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No topo da página, Eva e Pedro Herz no lançamento de Uma vida entre livros, de José Mindlin, em novembro de 1997; aqui, de cima para baixo, o encontro dos escritores Marcos Rey, Ignácio de Loyola Brandão e Mário Prata; um dos animados Sábado Cultura; Orlando Villas-Bôas em uma comemoração na livraria; o rabino Henry Sobel na sessão de autógrafos do livro O judeu na década de 80

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Jose Carlos Honório autografa seu livro No Deus-que-o-diga dos dias; a atriz no lançamento de Fernanda Montenegro – O exercício da paixão, em 1990; bate-papo com José Saramago durante visita do escritor, em 2008; Gore Vidal é recebido por Décio Pignatari, Pedro Herz e Luiz Schwarcz, em 1987

E, durante os 70 anos de existência, o mais natural é que ela tenha mudado bastante desde sua abertura – como a transição de alugar livros para vendê-los, se transformar em uma livraria instalada em um sobrado na Rua Augusta, mudar de endereço para o Conjunto Nacional e expandir suas lojas primeiro para a cidade de São Paulo e depois para o resto do país, até anunciar muito recentemente a compra da Fnac Brasil. Isso tudo se adequando a cada época em que vivemos, mas sem nunca perder a sua essência: acreditar no poder transformador da informação e da cultura.

É disseminando conhecimento que as mais incríveis experiências culturais acontecem, como descobrir um novo autor que vira o seu favorito, aceitar uma indicação de um livro de um estilo que você não pensaria em ler, mas, depois de devorá-lo, passa a gostar, ou embarcar em conversas sobre literatura, arte e cultura e só lembrar que é hora de ir para casa quando já anoiteceu. E olha que a Cultura já abrigou inúmeros papos literários nesses anos de vida, incluindo nessa lista amigos e grupos de leitores, escritores e artistas.

Foi nos anos 1970 e 1980 que um célebre grupo de escritores marcou a história da Livraria Cultura. No chamado Sábado Cultura, autores como Marcos Rey, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu e Ignácio de Loyola Brandão, entre muitos outros, se reuniam em frente à loja para papear, falar sobre novos lançamentos de livros e do cinema, fofocar e petiscar, ou seja, curtir a vida da melhor forma possível: passando um tempo com os amigos! Loyola lembra essa época com carinho: “O Sábado Cultura era sagrado. As pessoas apareciam aos poucos. Mário Chamie, Ives Gandra Martins, Gilberto Mansur, Marcos Rey e sua mulher Palma [Bevilaqua], Lygia Fagundes Telles, Ana Maria Martins, Ivan Ângelo, Wladir Nader (da Revista Escrita). Paulo Bomfim eventualmente, Joyce Cavalcanti, Roniwalter Jatobá, Ricardo Ramos... Íamos puxando mesinhas e cadeiras de uma lanchonete que existia em frente à livraria. Gell’s era o nome, se não me engano. Falávamos de livros recém-lançados e a lançar, fofocávamos, discutíamos cinema, filávamos [líamos de graça] livros da livraria, metíamos o pau na ditadura. Ao meio-dia o encontro estava no auge. Ives Gandra ia até a lanchonete e voltava com uma bandeja de salgadinhos, isso era ritual quase religioso”.

Jose Carlos Honório, escritor, psicanalista e curador da Livraria Cultura há 35 anos – um dos livreiros mais queridos que a marca teve e tem em sua história –, participava desses encontros ao lado de Loyola e companhia. “Quando comecei a trabalhar, com 18 anos, na Cultura, pude entrar em contato com todos aqueles escritores que eu lia. A loja sempre foi essa efervescência: como marca, como referência, como encontro, como lugar onde as pessoas interessantes e formadoras de opinião se encontravam. Até geograficamente falando, como ela era na Paulista, ajudava muito, então todo mundo se encontrava ali, e eu comecei a beber muito rápido dessa convivência. Todo esse povo vinha aos sábados e a gente conversava muito. Era tipo um grupo. Ficavam em várias mesas em frente à loja bebendo cerveja, tomando vinho, conversando sobre literatura, e isso sempre me interessou muito, essas inquietações humanas.”.

Loyola não cansa de recordar os ótimos momentos que passou nesses encontros. Conta que uma vez “houve um momento de encanto: apareceu a Tereza Collor, chamada na época de musa do impeachment, e sentou-se à mesa, ao lado de Lygia. Ocasionais foram Hernani Donato, boa conversa, historiador cheio de causos; Bruna Lombardi, a dramaturga Consuelo de Castro, Hilda Hilst. À determinada hora, anunciava-se: o homem chegou. Olhávamos e víamos um bando de seguranças postando-se em locais estratégicos nos corredores. Formavam um verdadeiro cordão. E então o velho Sebastião Camargo [fundador da construtora Camargo Corrêa], cachimbo na boca, surgia no Conjunto Nacional, entrava na livraria e demorava-se um tempão escolhendo livros. O jornalista Murilo Felisberto, diretor de redação do Jornal da Tarde em seu período de esplendor, era um dos habitués. Ele chegava com um pacote de jornais e revistas estrangeiros debaixo do braço, mas não se aproximava do grupo. Olhava de longe, chamava Gilberto Mansur. Depois chamava Ivan Ângelo. Se o Nirlando Beirão estava, tinha também seus cinco minutos. Conversa em segredo entre mineiros. Em seguida, Murilo desaparecia, não se misturava”.

NOVA SAFRA
A Livraria Cultura, além de recepcionar as pratas da casa nessas conversas e em lançamentos de livros, sempre recebeu escritores internacionais, impressionados com seu acervo e arquitetura única. “Lembro que a gente conhecia muito escritor que vinha de fora. Quando o Gore Vidal esteve na livraria, eu tenho até um livro bem bacana autografado por ele, causou um frisson. O Fritjof Capra também, o ‘tal da física’. As escadarias ficaram tomadas com gente querendo autógrafo dele. O Saramago então... Vem sempre muita gente!”, relata Jose Carlos. O curador e psicanalista, entre o atendimento de uma consulta e seu trabalho na Cultura, nunca deixou de papear com os escritores, que continuam frequentando a loja com fervor. “Às vezes encontro o Ruy Castro, que eu adoro, e é casado com a Heloísa Seixas, também uma escritora maravilhosa. Adélia Prado, que mora em Minas e é maravilhosa, o Loyola vem muito e a gente conversa bastante, José Nêumanne, que eu adoro e é um grande poeta. O Milton Hatoum vem muito, o Marcelo Rubens Paiva... No Nordeste a gente perdeu o Ariano Suassuna, mas tem o Abel Menezes. O Scliar vinha bastante. Hoje, ao redor do Brasil, tem a Lia Luft, o Fabrício Carpinejar, o Cristovão Tezza, o Trevisan, o Raduan Nassar, o Rubem Fonseca, o Alfonso Romanini Santana, a Marina Colasanti, o Contardo Calligaris...”
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Em sentido horário, o diretor Gabriel Villela e a atriz Regina Duarte, em janeiro de 1997; Cláudio Willer lança seu livro Volta, em novembro de 1996; Domenico Calabrone e a escritora Lygia Fagundes Telles, em junho de 1989; o antigo visual da Cultura no Conjunto Nacional

O jornalista, biógrafo e escritor Ruy Castro, frequentador assíduo da Cultura, enche a boca para falar que, durante 1979 e 1995, época em que morou em São Paulo, não ficou sem visitá-la nem por uma semana. “Calculo ter deixado em seu caixa o equivalente a um ou dois apartamentos. E quer saber? Valeu a pena! Sempre foi a livraria pela qual as outras se mediram. Ela tem uma coisa fundamental: seus funcionários gostam de livros, gostam de ler, podem conversar com os fregueses sobre literatura ou qualquer assunto. O cliente sente-se em casa. Imagino a quantidade de escritores e intelectuais que a Cultura formou, por causa de seus livros e de seu atendimento. Talvez eu seja um desses casos.”

A escritora e tradutora Lya Luft, que mora pertinho da Cultura do Shopping Bourbon Country, em Porto Alegre, confessa que não sai da loja. “Somos vizinhos e estou lá sempre, como todos na família. Todos os meus lançamentos são lá! A Cultura é especial e se afirmou como especial no país. Uma coisa que muito me agrada é a qualidade, formação e gentileza dos funcionários em atender, informar, orientar, encomendar o que às vezes não tem na loja.”

Já a também escritora Patrícia Melo é outra apaixonada pela Cultura, espaço que já lhe proporcionou grandes emoções. “São incontáveis os bons momentos que passei na Livraria Cultura. Foi onde fiz a maioria das noites de autógrafos de meus romances. Lembro que em uma noite de autógrafos de um amigo conheci o Paulo Francis, que estava de passagem pelo Brasil. Eu havia acabado de publicar Acqua toffana e o Francis o havia elogiado na sua coluna de jornal. Quando me apresentei, ele me disse daquele seu jeito inimitável e personalíssimo: ‘A sua aparência não condiz com sua literatura’.”

Frequentador assíduo, o que não falta para Loyola são boas histórias sobre o espaço. “Conheço a livraria quase do tempo em que dona Eva alugava livros em alemão. Segui seu crescimento, suas divisões segmento a segmento. Uma vez, Pedro [Herz] inventou um lançamento de 12 horas para meu livro O ganhador. Cheguei ao meio-dia e saí à meia-noite. Foi calmo, sem filas e assinei quase 400 livros. No lançamento de O verde violentou o muro, em 1985, olhando a extensa fila, vi uma velha senhora lá no fim. Falei com Pedro e ele foi buscá-la dizendo que podia passar à frente [estávamos criando a prioridade por idade]. A mulher recusou: ‘Estou aqui, converso com as pessoas, tomo um vinho, estou me divertindo. Se ele assina meu livro, pego e vou para casa assistir à televisão? Nem pensar’. A fila andava e ela voltava ao último lugar. Ficou até o final da noite. Em 1978, quando lancei o Cuba de Fidel, relato de uma viagem para lá, a livraria mais do que lotou. Depois de A ilha, de Fernando Morais, era o segundo livro que reportava aquele país. Vendeu mais de 400 exemplares. Anos depois, quando o secretário de Cultura Marcos Mendonça liberou os arquivos do Dops [Departamento de Ordem Política e Social], recebi minha ficha e ali havia o seguinte comentário do policial de plantão: ‘O lançamento foi um fracasso, havia uns poucos gatos pingados, todos de esquerda’.”

Por tudo isso que foi contado, não deixe de ficar de olho: quem sabe o próximo grupo de escritores não está se encontrando neste exato momento em uma das lojas da Cultura?
FOTOS 1 ARQUIVO LIVRARIA CULTURA | FOTO 2 RENATA JUBRAN
Fernando Henrique Cardoso, ainda senador, em 1992; Caio Fernando Abreu autografa Ovelhas negras, em julho de 1995