Embora existam pesquisas sérias sobre o hábito de leitura no Brasil, ainda há um método antigo que parece insuperável para se ter uma real noção do quanto o brasileiro lê livros: o transporte público. Basta você entrar em um ônibus, metrô ou trem e reparar a sua volta quantas pessoas estão com um livro nas mãos. Geralmente – em especial no pós-smartphones – não são muitas, o que corrobora o resultado das pesquisas, como a Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro e divulgada em 2016, a qual revela que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro (veja o box abaixo).

De acordo com Zoara Failla, gerente executiva do Instituto Pró-livro e coordenadora da pesquisa, são muitos os fatores que explicam a falta de leitores e todos eles passam por uma questão de formação. Não estamos conseguindo formar leitores que compreendem o que leem (um em cada quatro brasileiros são analfabetos funcionais). Além disso, diz ela, “os principais agentes formadores de leitores”, no caso a família e os professores, “também não são leitores”.

Considerando a diversidade e a desigualdade existentes em nosso país, fica muito difícil padronizar os motivos para esse déficit de leitura. A falta de acesso ao livro pode ser um dos mais prementes problemas em regiões ribeirinhas do norte do país e não ter tanto peso em lugares do Sudeste, que, por sua vez, pode ter uma visão de leitura como ato enfadonho ou obrigatório. “De qualquer forma, podemos citar a falta de equipamentos escolares e culturais que promovam leitura, a necessidade de formação e reciclagem de mediadores de leitura, a falta de investimentos na área de educação e cultura, sinalizando o desprestígio dessas instâncias nas políticas públicas do país, a condição de pobreza material, colocando o ter o que comer como a única meta a ser alcançada dia por dia”, comenta Stela Maris Fazio Battaglia, mestre e doutora na área de linguagem e educação pela USP, que atua em projetos de formação de mediadores de leitura.

A educadora Rosaria Boldarine, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguagem, Ensino e Narrativa de Professores da Unesp/Assis, acredita que os programas institucionais não têm apresentado mostras de solucionar os obstáculos encontrados na alfabetização e no letramento, problemas que prosseguem durante todo o ensino fundamental e médio. “Não basta apenas alfabetizar, o aluno deveria sair da escola com uma sólida formação, o que não temos visto. Isto talvez explique por que lemos tão pouco”, diz.

Professor da Faculdade de Educação da USP, Valdir Heitor Barzotto alerta para a eficácia das pesquisas sobre leitura. Segundo ele, é preciso considerar seus limites. “Elas não dão conta de fazer um levantamento eficiente sobre leitura. Como é que se quantifica leitura? Comprar livro e ler livro não tem relação. Isso já se constatou muitas vezes. Por que relacionar comprar e ler? Ninguém baixa livro da internet? Ninguém empresta livro?”, questiona.


O DESPERTAR
A questão mais premente e que esquenta a cabeça dos especialistas é como fazer para mudar esse cenário. Despertar a paixão pela leitura em um ambiente hostil a ela não é uma tarefa fácil. Não existem indicações precisas para ser bem-sucedido nessa empreitada. No entanto, há exemplos de que é possível ao menos disseminar a leitura, como o projeto Leve um Livro, da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. É uma coleção de livros de poesia distribuídos gratuitamente, em 21 pontos da capital mineira, em displays afixados em centros culturais, cinemas, cafés, bares, livrarias, sebos, teatros e bibliotecas.”

“São milhares de livretos de poesia contemporânea distribuídos na cidade. Esses livros se espalharam. Sabemos que foram parar longe porque as pessoas os enviam para outras, se presenteiam, colecionam, comentam, aguardam. Isso é um resultado e tanto para nós. Sabemos, pelas redes sociais, de pessoas que passaram a conhecer certo ou certa poeta por meio da coleção. Era essa nossa missão”, explica a editora Ana Elisa Ribeiro, à frente do projeto.

Para Rosaria, falar apenas em prazer pode ser um entrave na relação leitor-leitura. Afinal, muitas vezes ler pode ser mais uma necessidade do que um deleite. “O trabalho de levar cada vez mais pessoas para o encontro com a leitura tem de começar desde muito cedo. A escola, a família, os grupos sociais, todos são responsáveis por isso. Não basta ler, o escrito tem de funcionar como aquisição de conhecimento. Se o leitor não vê sentido naquilo que lê, não adianta ter acesso a todas as obras disponíveis. Adquirir informação é bastante diferente de adquirir conhecimento. É preciso que a leitura se torne uma prática social”, opina.

Segundo a professora Ivete Pieruccini, do Departamento de Biblioteconomia da Escola de Comunicações e Artes da USP, a biblioteca tem papel determinante também na formação do leitor. “Minha defesa é sempre na perspectiva de demonstrar o papel que as bibliotecas devem ter no processo de construção de sujeitos interessados pelo diálogo com o universo simbólico. Precisamos ter dispositivos culturais variados, criar circuitos que deem para o sujeito o sentido de ler. Porque ler não é só uma relação do sujeito com o texto, porque ele precisa construir um sentido para essa leitura”, afirma.


Há quem considere que as editoras também possuem uma responsabilidade na formação dos leitores, pensamento corroborado por Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. “Formamos leitores publicando livros que façam isso, à medida que as editoras tentam popularizar suas edições com livros de bolso, por exemplo”, diz.

O que fecha a trinca de gatilhos para a formação do leitor, e que talvez seja o mais importante, é o professor. Barzotto diz que é função do professor, além de ensinar a ler e compreender um texto, “alertar para o controle que se tenta fazer de seu tempo livre e mesmo do que ele tem de mais privado: seu prazer”. A escola assume um lugar importante na constituição de leitores. O professor pode ser um parceiro primordial na instigação da busca por livros, troca de leituras, discussões de assuntos suscitados pela leitura, ampliação e refinamento dos atos de ler. Um mestre deve ser um leitor para exercer seu papel de mediador de leitura. “Precisa estar disposto a conduzir e a ir junto com seus alunos nos caminhos dos vários gêneros textuais, linguagens e suportes de leitura. E isso é válido para professores de qualquer área e grau de escolaridade. É imprópria a ideia que considera apenas o professor de língua portuguesa responsável pela formação de leitores”, diz Stela.

É praticamente consenso entre os especialistas que a leitura forma o senso crítico do cidadão e que é um hábito que pode ser adquirido em qualquer idade. Se for estimulado na infância, melhor, mas nada impede que pessoas mais velhas também possam despertar esse desejo. “É claro que qualquer idade é idade de ler ou começar a ler. O problema talvez não seja o momento em que essa paixão se dá, mas o que a dispara ou poderia disparar. Não há uma receita para isso. E talvez seja demais exigir que as pessoas se apaixonem em massa. Gostaríamos que as crianças já gostassem de ler e que se tornassem adultos leitores, de modo contínuo. Mas pode acontecer de outro jeito. Pode-se desgostar das coisas. Mas estão todos, em qualquer idade, sempre convidados a ler”, opina Ana Elisa.

“A descoberta da leitura por adultos que se alfabetizam é algo emocionante. A própria demora em aprender a dar sentido aos sinais antes enigmáticos e o posterior aprendizado parecem evocar a alegria de um ser apaixonado. Com indivíduos já alfabetizados, para quem a leitura de um livro tornou-se ato cansativo, aborrecido, obrigatório, o desafio torna-se maior, porque algo foi perdido na sua construção como leitor”, reforça Stela.


RETRATOS DA LEITURA
As pesquisas realizadas no Brasil sobre o hábito da leitura apontam dados alarmantes. A quarta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro e divulgada em 2016, revela que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. A Bíblia é o livro mais lido, em qualquer nível de escolaridade.

De acordo com o último levantamento, que ouviu 5.012 pessoas, alfabetizadas ou não, os principais motivadores do brasileiro para a leitura de livros são: prazer (com 25%), atualização cultural ou conhecimento geral (com 19%), distração (com 15%), motivos religiosos (com 11%) e crescimento pessoal (com 10%).

Dentre os entrevistados, 67% não teve um incentivador de leitura durante sua vida, mas, dos 33% que tiveram alguma influência, a mãe, ou representante do sexo feminino, foi a principal responsável (11%), seguida pelo professor (7%).

As mulheres continuam lendo mais: 59% são leitoras. Entre os homens, 52% são leitores. Os dados mostram ainda que, quanto maior o nível de escolaridade do respondente, maiores as menções a “atualização cultural ou conhecimento geral”; ao mesmo tempo, menor a proporção de motivação de leitura ligada a “exigências escolares” e “motivos religiosos” entre os respondentes com maior nível de escolaridade. De acordo com os entrevistados, a leitura traz inerente o seguinte significado ou importância: é uma forma de obter conhecimento (49%), de atualização e de crescimento profissional (23%), é uma atividade interessante (22%) e é um modo de melhorar a própria situação financeira (17%). A biblioteca é fortemente associada a espaço para estudo e pesquisa e, embora seja mais frequentada por estudantes, 37% de seu público é composto de não estudantes.