Quando chego ao Rio de Janeiro via Aeroporto Internacional Tom Jobim/Galeão, passo obrigatoriamente por uma livraria (todos passam, com a nova reforma), e nessa livraria há um banner publicitário no qual está escrito a célebre frase do escritor Jorge Luis Borges: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”. Sigo para o portão de desembarque, imaginando o escritor bem acomodado em uma nuvem-poltrona, cercado de livros por todos os lados, milhares de páginas à sua disposição, lendo tudo o que deseja, escrevendo poesias, sem nenhum problema de tempo ou de espaço. No paraíso há noites e dias? Lê-se à luz de velas? Há luz elétrica? Enfim, questões práticas à parte, sempre que saio do Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, em São Paulo, após uma apresentação da peça A alma imoral, tenho vontade de ficar na livraria, pois ela é bem atraente também fora do horário comercial. Os livros em silêncio me olham, eu olho para os livros em silêncio, há uma cumplicidade sedutora no ar. Sinto uma vontade irresistível de ficar ali, como se ali pudesse ser o meu quarto de dormir. Pediria um delivery, estenderia um colchonete, avisaria à família – “vou dormir na livraria, amanhã eu volto” –, e passaria a noite ali, folheando tudo aleatoriamente, sem limite de tempo ou de espaço. Vivenciaria a curiosidade na sua máxima potência. Um dia, comentei com um dos seguranças (sem segundas intenções... rsrs): “Meu sonho é passar a noite aqui”. Ele riu e disse: “Tem noites que um ou outro livro cai sozinho da estante”. “Jura? Deve ser o Jorge Luis Borges, esse menino tem jeito não.” A Livraria Cultura tem um quê de biblioteca. Não somos meros consumidores. Somos consumidores-leitores, temos direito ao tempo. A crise no país perturbou esse fluxo de apreciação, em clima pacífico e reflexivo. Toda crise econômica e política magoa a cultura. E, no nosso país (e no mundo), quanto mais pessoas puderem desfrutar de um paraíso, tanto melhor. Mas há muito que comemorar. A valentia é grande: a livraria completa 70 anos. Sabem o que é uma livraria no Brasil completar 70 anos? Sou carioca, vi uma das maiores livrarias da cidade não suportar a pressão e fechar (depois reabrir): a Leonardo da Vinci. Uma livraria muito importante para mim na adolescência. Ali, detectei minha ansiedade voraz. Quando entrava na Da Vinci, ficava tão encantada e perturbada que não dava conta. Queria ler tudo, comprar tudo, não sabia escolher. Não tinha calma para pesquisar. E, na adolescência, para cada linha de livro que lia, sentia vontade de escrever um catatau de mil linhas nos meus cadernos espirais (de onde tirei essa palavra, catatau? Memória dos anos 1970). A Da Vinci, com suas estantes gigantescas, seu acervo infinito, seus labirintos, e clima de livraria do mundo, me dava uma sensação de potência-impotência muito grande. Aliás, essa é a sensação que os livros me dão. Tudo posso. Nada posso. Eu tinha vontade de escrever mais de um milhão de palavras por dia para dar conta de tudo o que os livros me inspiravam. Era muito jovem. Não sabia elaborar tantas coisas ao mesmo tempo. Então, o melhor era não ir muito à Da Vinci. O teatro curou essa ansiedade. Aprendi a escutar os livros, apreciá-los, conversar com eles, e não somente devorá-los, rasgá-los com meus olhos, como um bode-leitor que come pedras e escrituras. Um dia, a história com a Da Vinci se fechou na Cultura. Explico: estreei A alma imoral, no Teatro Eva Herz, a convite de Dan Stulbach, em 2008. A primeira temporada foi até 2011. Nesse período, conheci Pedro Herz, dono da livraria, por quem tenho grande admiração; conheci André Acioli, que hoje é o diretor artístico do teatro. Gosto tanto de sua maneira de trabalhar e pensar que recentemente dirigimos juntos a peça A cabala do dinheiro, em cartaz no mesmo Teatro Eva Herz; conheci o público paulista, com quem travo uma história de amor; conheci a Revista da Cultura. A alma imoral retornou em 2014 e segue em cartaz até hoje. Estreitei os laços com Gustavo Ranieri, editor da Revista da Cultura. Neste ano, passei a escrever para a Revista, fortificando os laços de confiança entre nós. Em resumo: há seis anos frequento a livraria semanalmente. Acompanho a dinâmica de arrumação dos livros, que se reagrupam numa dança genial pelas estantes e balcões, o que estimula a imaginação, e vai dando a eles novos sentidos, pois onde estiverem, ou ao lado de que títulos estiverem, são mais ou menos perceptíveis ou desejáveis. Estou sempre a par dos lançamentos, independentemente dos jornais, das redes sociais ou revistas. Sinto um prazer enorme em descobrir livros, CDs e DVDs (sim, eu compro CDs e DVDs). Os próprios livros te ensinam a achar outros livros. É a independência intelectual necessária. Livraria é um ótimo lugar para desenvolver autonomia emocional. Um dos livros “descobertos” foi A era das máquinas espirituais, de Ray Kurzweil. Flanava distraída quando o encontrei numa seção destinada a livros de matemática. O autor é bem conhecido, mas, confesso, não sabia nada sobre ele, nem sobre o livro. E foi com esse livro nas mãos que tive uma epifania: “Clarice, você não é mais a menina ansiosa da Da Vinci. Já sabe escolher um livro entre os milhares que existem. Não pensa mais no que vai perder ao deixar todos os outros entregues ao próprio destino. Só pensa no que vai ganhar ao ler o livro que tem nas mãos”. Só tenho a agradecer. E lançar um viva! à bravura de Pedro Herz e da família Herz por manter o Teatro Eva Herz aberto. Algumas pessoas perguntam: a Clarice vai ficar no teatro para sempre? Por mim, eu ficaria. Mas “para sempre é sempre por um triz”, como canta Milton Nascimento. Brinco com os amigos que dona Eva Herz deve gostar bastante de A alma imoral. Do pouco que sei, foi a partir de uma ideia dela, de alugar livros para ajudar a família a sobreviver, que nasceu a semente da livraria. O tema obediência-desobediência lhe deve ser caro. Aliás, quando cheguei em 2008 com A alma imoral a SP, tinha o apoio cultural de outra livraria da cidade. Apoio esse acolhido pelo Pedro Herz (a logomarca entrou no material gráfico da peça), assim como foi acolhida pela outra livraria a minha estreia na Cultura. Coisa de gente grande. Que possamos manter aberta essa estrada do diálogo, da tolerância, da arte e dos afetos. E que o país possa ter suas livrarias, bibliotecas, seus paraísos. É hora de sonhar novamente. Que eu possa um dia passar a noite na livraria.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E SONHA EM ADAPTAR UM CATATAU DE LIVROS PARA O TEATRO.