O desenho urbano, ou urban sketching, como ficou conhecido internacionalmente, possui uma forte aderência com o ato de flanar, com o caminhar pela cidade para ver o que se pode encontrar. Felix Scheinberger, reconhecido ilustrador alemão e professor na Münster School of Design, na cidade de Münster, em entrevista para a Revista da Cultura, dá sua visão sobre o desenho: “De maneira geral ele, e não só o desenho urbano, possibilita uma verdadeira discussão sobre a vida. Quando desenhamos os assuntos, passamos mais tempo com eles. Damos atenção e tentamos entender o que estamos desenhando. Tudo isso proporciona relações mais amigáveis com o que nos cerca”.

Sobre o tema, dois livros serão lançados em setembro: o primeiro, de autoria de Scheinberger, é Sketchbook sem limites; o segundo, de Bruno Mollière, é A perspectiva em urban sketching – Truques e técnicas para desenhistas. Os lançamentos acontecem no contexto do segundo encontro nacional Urban Sketchers Brasil 2017, que ocorrerá em São Paulo. Segundo Ronaldo Kurita, arquiteto e organizador do encontro, o evento acontecerá nos dias 7, 8 e 9 de setembro, em locais como o Memorial da América Latina, o Vale do Anhangabaú, o bairro da Luz e no Sesc Pompéia.

É importante destacar que há dez anos foi criada a comunidade global Urban Sketchers (USK) por Gabi Campanario, jornalista catalão e ilustrador do jornal The Seattle Times, da cidade de Seattle, nos Estados Unidos. A comunidade global possui mais de 90 mil membros no Facebook, com dezenas de postagens de desenhos por dia. Existem 165 grupos regionais de USK espalhados por 51 países. É Campanario quem nos conta como começou a comunidade: “Desde o início, suspeitei que a comunidade de USK continuaria em crescimento, afinal, desenhar a partir da observação direta não é algo novo. Esse tipo de desenho é feito por artistas, ilustradores e arquitetos há muitos anos. O que mudou é que agora a internet tornou possível expandir o apelo do desenho como hobby, para pessoas com habilidades diferentes para o desenho, para pessoas de diferentes profissões, nacionalidades e culturas”.

Scheinberger, que conhecerá o Brasil em setembro, uma vez que irá participar do segundo encontro nacional USK, já ilustrou mais de 50 livros nos últimos 20 anos, além de ter seus trabalhos impressos nas páginas de jornais e revistas. O alemão diz que seu livro não trata somente do desenho urbano, mas sobre o “refletir o desenhar”. Em sua opinião, os desenhos que tentam “imitar fotografias” são maçantes porque estão vazios de “aspectos pessoais, humanos”, justamente o que torna os desenhos “empolgantes e vivos, cheios de verdade e paixão”.

A postura do flanar, que pode ser entendida como a possibilidade de caminhar e se deixar levar pela poesia e concretude da cidade, se liga de maneira direta à necessidade do tempo para observar, do tempo que pede o desenho urbano. Para Kurita, coordenador do USK São Paulo, juntamente com Irmgard Schanner, Tereza Cordido e Fabiana Boiman, o desenho possibilita “conhecer e reconhecer a cidade com um olhar diferente de um transeunte; se conectar e recriar uma identidade entre cidadão e cidade; fazer turismo e visitar locais históricos ou descobrir novos lugares interessantes. Tudo isso somado faz com que a gente se aproprie do espaço público e valorize a história. Em tempos instantâneos, as coisas mal são observadas. Mesmo em um desenho rápido, despendemos um certo tempo analisando os objetos a serem desenhados. Além do registro no papel, guardamos outras informações do local como cheiros, clima, importância no contexto urbano e a população que faz uso desses espaços”.

Em um contexto em que a vida transcorre de forma acelerada e é capturada pela tecnologia, a atenção sobre a vida cotidiana poderá contribuir para uma atitude mais atenta sobre a urbe e seus fenômenos “banais”, como explica Scheinberger. “O desenho não é feito somente com as mãos. Você desenha com os olhos e com o cérebro. Com isso quero dizer que você precisa estar em contato com o ambiente, estar atento sobre o mundo. (…) O desenho urbano reúne pessoas e põe todas em contato. E, claro, estimula a paciência, a compreensão e a paz, que sem dúvida são atitudes políticas.” Já para Campanario, “o desenho pode ser uma maneira de você se conectar com a comunidade onde vive. Esse tipo de desenho é como conversar com um lugar. Você observa, processa o que vê e registra”.

Da fala de Ricardo Luis Silva, arquiteto e professor da disciplina de teoria e estética da cidade, no curso de arquitetura e urbanismo do Centro Universitário Senac, se aprende que são as pessoas que fazem a urbe: “Digo sempre para meus alunos: não deveríamos pensar em ‘cidades para pessoas’, pois elas não são para pessoas, como se as pessoas fossem clientes e usuárias que recebem uma cidade. Deveríamos entender que o que temos é uma ‘cidade de pessoas’, pois somos todos nós, ricos e pobres, de carro ou a pé, que fazemos a urbe, nossas ações no cotidiano que a fazem”.

Sobre a USK, Luis Silva acrescenta: “Acredito ser uma iniciativa muito interessante que convoca o corpo a estar na cidade e disponível para ‘sofrer’. Caminhar para encontrar um local a ser desenhado, neste local achar um lugar para ‘depositar’ o corpo, onde ele permanecerá por um bom tempo, observando o que está em volta. Ficar ali por algumas horas atento a pequenos detalhes, muitos deles bastante banais, para registrá-los em desenho. Muitos diriam, com a cabeça bem anestesiada pela tecnologia racionalizada, que é muito mais fácil tirar uma foto com o celular. Pois bem, eu diria, aí está justamente a questão. Por que tudo tem de ser levado pela via do ‘mais fácil’? E, quanto mais assumimos essa via, mais nos afastamos da cidade e da vida cotidiana”.