“Quem é você que não sentiu o suingue de Henri Salvador?” Caetano Veloso questionou na canção Reconvexo, tal era o poder do cantor, compositor e guitarrista francês, que nasceu em Caiena, capital da Guiana Francesa, em 1917 – e que, portanto, em 18 de julho completaria 100 anos, caso não tivesse falecido em Paris, em 13 de fevereiro de 2008. Apontado por muitos como precursor e influenciador da bossa nova, ele teve uma relação muito forte com o Brasil, especialmente com o Rio de Janeiro, tanto que chegou a morar no Hotel Copacabana Palace e a fazer temporadas no Cassino da Urca. “Henri Salvador deixou a França em 1941 para se juntar à orquestra de Ray Ventura em turnê na América do Sul. Ele encontrou seu primeiro sucesso como cantor no Cassino da Urca, com uma imitação de Popeye e a interpretação de Maladie d’amour. Durante essa visita, ele conheceu Bernard Michel e Maurice Pon, com quem escreveu muitos sucessos como Une chanson douce, Le travail c’est la santé e Dans mon île. E, durante esse período de quatro anos passados no Brasil, ele descobriu a música brasileira, em particular o samba e o samba-canção, comenta o cantor Philippe Quevauviller, que integra o conjunto francês Bossa Flor, o qual, em seu repertório, mistura bossa nova com canções francesas.

A relação com a música brasileira e com os músicos e compositores daqui permaneceu ao longo de toda a vida de Henri Salvador. O álbum Chambre avec vue, de 2001, por exemplo, tem o toque brasileiro em canções como Jardin d’hiver, que foi adaptada em português como Jardim, por Bia Krieger; e J’ai vu, que foi adaptada por aqui pelas mãos de Ronaldo Bastos e cantada em português por Celso Fonseca. Já em 2006, ele lançou o disco Reverência, com a maioria das músicas gravadas no Rio de Janeiro e com a participação de Jaques Morelenbaum, João Donato, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que tornou o amigo conhecido no Brasil ao cantar seu maior sucesso, Dans mon île.

Lançada comercialmente em 1958, essa canção é a responsável por fazer boa parte da imprensa francesa denominar há décadas Henri Salvador como o “pai da bossa nova”. Há muita polêmica em torno disso, mas o cantor e compositor Roberto Menescal, por exemplo, não deixa de reconhecer a influência. “Quando eu tinha cerca de 17 anos e estava começando a tocar violão, fui com Nara Leão [na época, namoradinha minha] assistir a um filme chamado Europa à noite, onde mostravam diversos shows que aconteciam naquela época por lá e um deles era com Henri Salvador cantando Dans mon île. Ficamos loucos e passamos a tocá-la ao violão e mostrar para os amigos que tocavam e cantavam conosco”, recorda. E acrescenta: “Nós procurávamos uma nova música com harmonias interessantes, gostávamos do canto mais suave do que o que se praticava na época, e várias pessoas em vários países também vinham procurando a mesma coisa. Foram os casos de Chet Baker, Johnny Alf, João Gilberto, Tom Jobim. E assim a coisa foi se armando, e todos esses e mais outros foram precursores da bossa nova, sem dúvida”.

Roberto Menescal chegou a conhecer pessoalmente Henri Salvador. “Fui conhecê-lo na casa do nosso guru, André Midani, que, sabendo da nossa paixão por ele, armou um almoço nos juntando. Há alguns anos, quando eu era diretor artístico da gravadora PolyGram e estava com Caetano, que iria gravar mais um disco, mostrei-lhe Dans mon île e ele a gravou lindamente”, recorda com alegria. No tal almoço, Menescal fez questão de dizer ao cantor e compositor francês que a bossa nova existiria de qualquer maneira no mundo, mas, sem ele, talvez tivesse sido um pouco diferente. “E ele se emocionou muito ao ouvir isso”, assegura.

O jornalista, escritor e pesquisador musical Ruy Castro, autor do clássico livro Chega de saudade, que conta a história da bossa nova, tem outra opinião. “Alguém por aqui não pesquisou direito e atribuiu à canção Dans mon île, do Henri, de 1958, uma influência sobre Tom Jobim. O que é estranho, já que Tom só ouviu essa canção, belíssima, aliás, em 1960, quando estreou aqui o filme Europa à noite, no qual ela foi lançada. E, em 1960, Tom já tinha feito Chega de saudade, Desafinado, Samba de uma nota só e outras 50 bossas novas. Qual é a influência?”, alerta. Ruy Castro não deixa de reconhecer, no entanto, que o francês era delicioso compositor e cantor, suave e melódico, e parece que uma pessoa adorável, que foi muito influenciada pela música brasileira. “Ele se apropriava de músicas brasileiras, às quais punha letras em francês e gravava em Paris. Uma que ouvi pessoalmente, numa discoteca de Saint-Tropez, em 1981, foi Qu’est-ce que tu penses? – nada menos que Lança perfume, da Rita Lee”, conta.

Opinião semelhante tem Quevauviller: “Dans mon île foi mais uma balada guianense do que uma bossa. A bossa nova é o resultado de influências muito diversas, desde o samba, o jazz, e de encontros musicais. Henri Salvador foi um dos músicos que contribuíram para dar uma das muitas sementes da bossa nova. Chamá-lo de ‘precursor’ é certamente exagerado. Os precursores são de fato Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, João Donato e Johnny Alf. O inventor é João Gilberto”.

Porém, a relação com o Brasil era tão intensa que pouco se sabe a respeito da influência da terra natal, a Guiana Francesa, em Henri Salvador. “Não aparece muito na biografia dele. Tem de fato mais referências da sua relação com o Brasil”, garante Quevauviller. E Emmanuel De Ryckel, editor da revista francesa especializada em bossa nova Bossa Mag, acrescenta: “Quando entrevistei Catherine Salvador, a mulher de Henri, ela me contou que ele sempre falava assim: ‘Tenho a impressão de ter nascido na terra do Brasil’. Então as suas origens sempre permaneceram gravadas profundamente no seu coração”.


MÚLTIPLOS TALENTOS
Tudo leva a crer que Henri Salvador apenas nasceu em Caiena, pois seus pais eram naturais da Ilha de Guadalupe – também um departamento ultramarino francês no Caribe –, e, aos 12 anos, já se mudou com a família para Havre, uma comunidade no nordeste da França, na Normandia, e dali partiram para a capital francesa. “Aos 18 anos, Henri começou a tocar violão, acompanhando Django Reinhardt no Jimmy Bar, em Paris. Ele ganhou uma reputação no mundo do jazz antes de encontrar a fama como cantor no princípio dos anos 1940, com canções como Maladie d’amour e outras escritas por Maurice Pon. Mais tarde, na metade dos anos 1950, ele cantou as primeiras músicas de rock and roll e blues em francês, escritas por Boris Vian e compostas por Michel Legrand. Ele se dedicou depois às canções humorísticas e músicas doces [impregnado de influências da América do Sul]”, retrata Quevauviller.

Ryckel, por sua vez, destaca que “Henri Salvador era um dos maiores artistas de music hall do século passado. Ele sabia fazer tudo: cantar, ser ator no cinema e na televisão, humorista, dançarino. Como cantor, ele tinha capacidade de interpretar valsas, boleros, rock and roll, bossa nova, jazz, canções para crianças e filmes. Como compositor, ele fez músicas que alcançaram um sucesso inimaginável na Europa. Mas o lado dele que permanecerá é seu talento de compositor de melodias bem sofisticadas, sobre as quais grandes autores punham letras que manipulam a língua francesa da mais bonita maneira”.

Philippe Quevauviller e Emmanuel de Ryckel estão à frente das comemorações que marcam o centenário do cantor e compositor, o que incluiu dois concertos, os quais foram realizados em 22 de abril e 5 de maio; um disco com músicas interpretadas pelos maiores cantores franceses contemporâneos; e, junto com grandes produtoras cariocas e o canal francês de televisão TV5, preparam para o final deste ano ou início de 2018 um grande evento no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, reunindo nomes como o próprio Menescal, Carlos Lyra, Marcos Valle, Joyce, Leny Andrade e João Donato.