Se hoje eu controlo a raiva, suporto a pressão do trabalho e negocio prazos com a minha ansiedade, devo a paciência para a leiteira. A leiteira de ferro amassado da infância.

Jamais decifrei o segredo da operação quando eu era pequeno e guardião do fogão no turno da manhã. Despontava como um dos mistérios da humanidade, pareado ao “monstro do Lago Ness” e ao ‘abominável homem das neves’, figuras míticas que lia na coleção de meu irmão, Grandes civilizações desaparecidas.

Não existia chance de colocar o leite a ferver e apagar antes de transbordar. Acho que nunca se alcançou tal proeza. Nem eu, nem ninguém. Não se tratava de um fato comprovado, mas um desejo familiar impossível.

Eu permanecia dez minutos olhando fixamente para a leiteira aquecendo, sem piscar, sem pestanejar, focado, concentrado, mas era virar um pouco o rosto para o lado que o leite subia e sujava tudo. Um descuido mínimo e perdia o momento. Um cumprimento a alguém que surgia na cozinha e desperdiçava o meu trabalho.

Busquei a vida inteira apanhar o leite antes do transbordamento e nunca consegui. Foram dezenas, centenas de vezes que tentei e fracassei e me via depois passando a bucha, desanimado, entre as bocas de fogo. Bocas que riam da minha cara. O fogão bebia a maior parte do leite de casa. O fogão se lambuzava e ironizava a minha tarefa.

E fazia a maior bagunça sempre, o que acarretava tirar todas as grades e recuperar o brilho do aço com álcool.

Quando a minha mãe pedia para cuidar do leite, eu já sabia que teria de limpar o fogão. A vigilância e a limpeza estavam lado a lado, como sinônimos, no dicionário do cotidiano.

Acredito que a leiteira possuía um inacreditável e secreto sensor de presença facial. Ao mínimo movimento, a erupção do vulcão. Não havia como remediar, suspirar, gritar, espernear. Nada impedia a correnteza cálida. O mal estava feito. Segundos incontornáveis de lava branca escorrendo pelos caminhos das panelas.

Se hoje eu sou competitivo, não aceito derrota e nego a retratação mesmo desprovido de razão, também devo à leiteira de ferro amassado da infância.

FABRÍCIO CARPINEJAR É POETA, JORNALISTA E CRONISTA. AUTOR DE AMIZADE É TAMBÉM AMOR, ESTÁ EM TURNÊ PELO PAÍS COM O ESPETÁCULO O AMOR NÃO É PARA OS FRACOS.