Felicidade é uma coisa que sempre me intrigou. Você nunca foi feliz? Silêncio. Por que você sempre escreve assim, como se estivesse conversando, dando entrevista? Vício do teatro. Por isso você tem esse rosto dessemelhante de si. Não, isso é culpa dos espelhos. Você fala coisas que não entendo. Estou remexendo as poesias da adolescência. Tenho uma curiosidade sobre você: por que nunca bebe? Defeito de fabricação. Fiz tratamento para começar a beber, não adiantou: muito louco ser saudável, não tem cura. Você e suas retóricas. Vai. Lê. Essa é de março de 1977. Meu pai, quando leu uma poesia que tive coragem de lhe mostrar, disse: Clarinha, nunca jogue fora nada que escrever, você é poeta. Seu pai disse isso? Disse. Que sorte ter um pai assim. E me deu de presente uma máquina de escrever Olivetti que guardo até hoje. E me ensinou a datilografar, eu tinha 13 anos. Você sabe datilografar? Faço coisas do arco da velha. Serve para quê? Se um dia eu me separar do meu marido, vou sair na night com uma plaquinha: Modelo de colecionador. Peças originais. Bato a máquina de olhos vendados na velocidade desejada. Você devia escrever comédias, poemas pornô. Tá rindo de quê? Lembrei de um filme pornô a que assisti em Portugal. Vamos à poesia. O filme é melhor. Não enrola. A plaquinha da night dava um bom perfil no Tinder. Lê! Chama-se A pia. A pia? Eu não era de colocar título, mas meu pai sempre perguntava: e o título? Eu inventava na hora. Não que eu goste especialmente dessa poesia; enfiei a mão dentro de uma das pastas de poesias e saiu essa, mas queria mesmo era te contar o filme. Depois. É a gramática dos meus 17 anos, dá um desconto; quero só te provar que o tempo não existe. Como assim? Escuta. Lavo meu rosto/há em mim o ser que sou/e o ser que se pensa/desejo ser o que penso/desejo ser o que sou/entre os desejos essa água no rosto/passando pelas pontes medievais/modestas/pops/luxuosas do tempo indefinido/comédias e tragédias travadas entre o ser que sou e o ser que se pensa/eu devia aparentar o que sou/o sonho/mas revelo só parte da minha verdade/da minha mentira/não por opção/juro/assim é a natureza do que se materializa/e o amor nada mais é pra mim do que essa água/essa pia/essa torneira quebrada/as gotas em contínuo ritmo/me lembrando que eu deveria ser o que sou/não o ser que se pensa/ esse é o fim. Silêncio. Você não vai dizer nada? O que isso tem a ver com o tempo? Eu sei que a poesia não é boa, mas como registro é excelente: eu sou essa garota, só que mais velha. Você devia mudar o título: A garota. A garota da pia? Esquece a pia, pô. A dama do lotação pode, né? Conta o filme. Estávamos eu e meu marido em um hotel em Lisboa zapeando os canais de TV quando, de repente, entra a cena de uma mulher deitada numa cama de solteira, com as mãos algemadas na cabeceira, usando apenas uma calcinha, gemendo solitária. Escutamos quén-quén. Um homem nu, com bico de Pato Donald na boca, escovinha na mão, membro ereto e pés de pato, caminha em direção à mulher que geme. O quén-quén vai se intensificando. Ele passa a escovinha no corpo dela. Ouvimos novo quén-quén. Outro homem pato entra em cena, e outro, e outro, e mais outro, quén, quén, quén, quén, quén, quén, quén, quén. Um bando de homens patos de membros eretos cercam a cama da mulher que se contorce, enquanto o grasnar sem fim nos leva a pensar se o filme não seria o pesadelo erótico de uma criadora de patos. E aí? E aí, nada, acabou o filme. E vocês? Combinamos que eu era a mulher de calcinha e ele o homem pato. Só transamos no dia seguinte, quando o ataque de riso passou. E qual a relação disso com a sua adolescência? Nenhuma, afora a bobeira. A noite foi sem uma gota de álcool? Só na água mineral. Tivéssemos nos filmado e postado, alcançaríamos mais de 1 bilhão de visualizações. Silêncio. Escuta: na década de 80, lia sem parar Krishnamurti. Achei entre as poesias o livro A eliminação do tempo psicológico, um diálogo do mestre com o cientista David Bohm. Reli algumas páginas. Vou amar Krishnamurti para sempre. Ele pergunta: (...) poderemos atuar de um modo tal que todos os assuntos sejam resolvidos instantaneamente, imediatamente, de forma que o tempo psicológico seja abolido? (...) quando o tempo finda, há o início de algo totalmente novo? Existe um início que não está enredado no tempo? (...) o que há quando todo tempo termina? (...). O que há? A felicidade. Nascemos sem início nem fim, e toda poesia é uma única poesia, escrita por quem não quer ser o que se pensa, mas o que se é, diante do mundo, esse espelho, a eterna garota, lavando o rosto na pia, pagando o pato, dia a dia, por sentir que dentro dela, de fato, o tempo não existe.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E QUANDO CRIANÇA CRIOU UM PATINHO NA PIA.