A relação entre o indivíduo e a cidade é complexa e multifacetada. Quando se fala de megalópoles, as possibilidades de abordagem se multiplicam. Mas existem vieses possíveis para se esboçar os contornos dessa relação: o comportamento dos indivíduos na urbe a partir do estar e do caminhar – em oposição ao deslocamento urbano com o corpo em suspensão, o urbanismo, a arquitetura, a psicanálise e a observação; são todas possibilidades que se relacionam para elaborar e compreender o lugar que a cidade ocupa no interior de cada um.

Conhecido em diversos países, dentro do campo acadêmico da arquitetura, o italiano Francesco Careri, arquiteto, professor e pesquisador do Departamento de Arquitetura da Università degli Studi Roma Tre – onde dirige o grupo de pesquisa Laboratorio Arti Civiche (Laboratório de Artes Cívicas) –, desenvolve trabalho original e transgressor sobre o caminhar como ato estético e de apropriação da cidade. Na disciplina que ministra, seus alunos, majoritariamente do curso de arquitetura, aprendem andando por Roma e interagem com fenômenos urbanos.

É de Careri também o livro Caminhar e parar (Editora GG Brasil), que será lançado no Brasil neste mês. Trata-se de uma coletânea de 12 textos, escritos entre 1996 e 2005, que refletem, sob a perspectiva de um caminhante, sobre as coisas que vê e sobre os fenômenos que presencia. “Esse novo livro aborda como o andar pode se relacionar com o parar, porque também podemos ser sedentários de maneira nômade. Ele fala sobre o sentar e parar e também sobre construir uma arquitetura, preenchida com um ânimo nômade, de alguém que chega, conhece e se relaciona com os habitantes, constrói e se vai. Para mim, é importante que o ato de caminhar não seja somente estético, que pode ser sozinho ou de maneira totalmente artística, mas também o caminhar de um mundo, para transformá-lo”, destaca o italiano em entrevista à Revista da Cultura. É de sua autoria igualmente Walkscapes – O caminhar como prática estética, publicado em 2002 como resultado de sua tese de doutorado e que projetou seu pensamento por universidades do mundo todo.

Para se compreender o pensamento de Careri, é necessário falar do coletivo Stalker (Observatorio Nomade), criado por ele juntamente com outros arquitetos e artistas em 1995. Os integrantes do grupo andam sobretudo pela capital da Itália e realizam ações de arte pública de maneira informal, se colocando a estudar microtransformações no ambiente urbano causadas pelos habitantes, assim como projetos de autorrecuperação e de autoconstrução que acontecem na cidade. Atualmente, o coletivo desenvolve criação artística com o mote da imigração, a partir da releitura de A Eneida, de Virgílio, que conta a saga de Eneias, um troiano que sobrevive à guerra até chegar à Itália. Na visão de Careri, o poema épico escrito no século 1º antes de Cristo chama a atenção para o fato de sermos todos um encontro de imigrantes, refugiados e aborígenes. Um olhar crítico sobre a atualidade ligada aos fluxos migratórios.

ATENTO PELA URBE
Uma parte das populações dos grandes centros urbanos já não mais caminha pelas cidades; se desloca pela urbe com seus corpos suspensos, dentro de carros. Protegidos por veículos cada vez maiores e, por isso, sem contato com a diversidade das ruas, a distância só aumenta entre os indivíduos e os centros urbanos – e o outro.

Professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco, estudiosa da dimensão subjetiva da arquitetura a partir de teorias psicanalíticas e coordenadora do Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura (NusArq), Lúcia Leitão ressalta que “o caminhar nos impõe o outro em face no cotidiano da vida. Consequentemente, a rua nos faz humanos, por nos impor o reconhecimento e o respeito ao outro e a suas diferenças, ou (in)humanos, como parece ser a realidade do Brasil contemporâneo”. Autora de livros como Onde as coisas e homens se encontram, Cidade, arquitetura e subjetividade e Quando o ambiente é hostil, a especialista amplia sua reflexão: “O caminhar, o passo a passo propiciado urbanisticamente pelo traçado da rua, permite a cada pedestre exercitar a cordialidade, praticar a urbanidade indispensável na convivência com o próximo. Um outro que se faz presente nas esquinas, nos cafés, nas passeatas, nos protestos políticos, assim como nas procissões religiosas, circunstâncias sociais vivenciadas nas ruas de toda cidade, circunstâncias em que cada um afirma um querer, assinala um modo de pensar, delimita um território socioespacial. No ambiente urbano, a rua é um elemento de fronteira. O espaço que se situa entre a casa e a cidade, entre o familiar e o estranho, entre o próximo e o distante, entre o eu e o outro”.

Ricardo Luis Silva, arquiteto e professor da disciplina de estética e crítica da cidade, no curso de arquitetura e urbanismo do Centro Universitário Senac, enxerga a questão do caminhar de maneira semelhante à professora Lúcia Leitão. O professor ressalta que o simples ato de caminhar não faz com que o indivíduo esteja de maneira plena nessa atividade. “Ao caminhar pela cidade, aceitamos reconhecê-la da forma que ela é, da forma que ela se apresenta. Esse ‘estar quieto’ é se colocar perante a cidade e a vida cotidiana constituidora de uma forma disponível e franca, reconhecendo os conflitos, os dissensos, a alteridade.”


MICROACONTECIMENTOS
Não só o caminhar, mas o olhar atento para a cidade com seus microacontecimentos faz com que surjam subjetividades urbanas a partir do cotidiano. No curioso livro Tentativa de esgotamento de um local parisiense, de Georges Perec (1936-1982), essa dimensão da vida cotidiana é descrita em palavras: em outubro de 1974, o autor permaneceu por três dias seguidos na praça de Saint-Sulpice, em Paris, e anotou tudo o que via. Ricardo Luis Silva, autor do prefácio para a edição brasileira do livro de Perec, chama a atenção para “nossa ignorância em ver a cidade” ao escrever: “Do começo ao fim do livro, veremos um narrador fazendo-nos um convite derradeiro: ir à cidade e estar nela, estar quieto e contemplá-la. Talvez assumir esse lugar e esse tempo desconfortáveis, assumir a pausa nessa cidade que não para e estar nessa cidade que não é nossa”.

Luis Silva afirma que Perec valoriza “a vida cotidiana e suas banalidades ordinárias” e que sua obra se relaciona ao “caminhar” desenvolvido por Careri “na relação que Perec estabelece com seu corpo na cidade. Solicitar ao corpo que esteja realmente presente naquele local, que se perca tempo. Essa relação fica evidente numa das frases de Careri no livro Caminhar e parar: ‘Quem perde tempo ganha espaço’. É isso que Perec faz na experiência relatada no livro, ele para! Ele se detém na cidade para observá-la. Ele ‘perde tempo’ vendo o tempo passar. Ele ‘ganha espaço’ ao obsessivamente registrar todas as banalidades que acontecem perante seus olhos”.

SUBJETIVIDADE DOS LOCAIS
Com uma linha de pesquisa aparentemente incongruente – sob o olhar do leigo –, mas absolutamente vanguardista, os livros e os estudos coordenados pela professora Lúcia Leitão preenchem uma lacuna existente: a intersecção do pensamento arquitetônico com a teoria psicanalítica. “O tema comum aos livros é a investigação sobre processos inconscientes na arquitetura, seja na casa, objeto basilar do fazer arquitetônico, seja na cidade, a grande casa humana. Em outras palavras, os estudos que realizamos mostram, à luz da teoria psicanalítica, a dimensão imaterial da arquitetura, aquilo que excede, em muito, a objetividade física dos objetos arquitetônicos. Mostram como e por que determinados edifícios se tornam afetivamente insubstituíveis”, explica ela, que vai além ao dizer que a “sociedade brasileira esqueceu que, ao escolher viver de portas adentro, marginalizou o outro, agrediu-lhe a autoestima de modo devastador, ao dizer-lhe, implicitamente, que há duas cidades, dois modos de morar, definidos principalmente em função da renda das pessoas. Ao construírem muros sem fim, reais e simbólicos, a sociedade parece não ter compreendido, ainda, que muros nem sempre protegem, mas separam sempre”.

Para finalizar, Lúcia joga luz sobre a “simbiose” entre o eu e a cidade: “Estamos acostumados a considerar a cidade ‘a coisa humana por excelência’, como escreveu Lévi-Strauss, é parte importante dessa história pessoal, singular. A cidade não é apenas o lugar onde vivemos, mas também é parte de nós mesmos, é elemento constituinte da nossa própria subjetividade. Drummond, aliás, expressou essa ideia, quando escreveu assim: ‘A cidade sou eu/sou eu a cidade/meu amor’. Talvez por isso usamos frequentemente a expressão minha cidade, sem nos darmos conta da ‘impropriedade’ dessa afirmativa, uma vez que cidade é algo coletivo por definição”.

Das reflexões emerge uma questão: qual o lugar que “sua” cidade ocupa dentro de si?