Na década de 1980, quando Clarice Niskier estreava profissionalmente como atriz e interpretava sua primeira protagonista, na peça Porcos com asas, houve um dia de espetáculo em que havia menos pessoas na plateia do que atores em cena. Nessa época, conta a atriz, existia uma máxima no teatro de que o grupo só se apresentava se o público superasse o número de intérpretes. Fez-se então votação entre os 15 atores do espetáculo em questão para decidir se seguiam com a apresentação para as nove pessoas interessadas em vê-los. “Nos apresentamos, votei que sim e meu voto valia por dois, pois era protagonista”, Clarice lembra. “Já fiz peças para apenas uma pessoa e naquele dia acho que teria feito mesmo se não houvesse ninguém. Não se canta para si mesmo? Há um lado meu que faz teatro para mim mesma. Fui abençoada de trabalhar com o que tem a ver comigo, o meu tesouro”, diz ela, que desde 2006 se apresenta com A alma imoral, peça que adaptou do livro homônimo do rabino Nilton Bonder.

A atriz ainda se recorda quando ligou para o autor pela primeira vez, perguntando se poderia encenar a obra que a havia arrebatado de maneira imediata, ao elucidar o conceito de desobediência sagrada e mostrar que a traição pode ser tão benéfica quanto a tradição. “Você acha que o livro rende uma peça?”, Nilton questionou após ouvir o pedido. “Então está autorizado”, completou.

“É sua prática rabínica, ele é um homem mais espiritualizado”, Clarice conclui mais de uma década após o contato. Nos primeiros anos em que o monólogo esteve em cartaz, a atriz – que também é colunista da Revista da Cultura – achava graça daqueles que diziam que ela continuaria a fazê-lo mesmo quando estivesse velhinha. “Hoje, acho que é uma realidade. Preciso tanto escutar os ensinamentos de A alma que não me imagino sem ela”, diz. “O sentimento de amor que tenho pela plateia quando enceno a peça é tão profundo que é como se fosse o mesmo sentimento que tenho pelo meu filho.”

Quando está distante do palco – e do público, que já ultrapassou o número de 400 mil espectadores –, a atriz também segue às voltas com os ensinamentos de Nilton. Em uma pequena sala de um hotel em São Paulo, Clarice acompanha um calhamaço de folhas que contém a dramaturgia criada a partir de A cabala do dinheiro, outro livro do rabino, cuja direção ela divide agora com André Acioli. Em uma noite de junho, cerca de um mês antes da estreia do espetáculo, em cartaz desde o último dia 11 no Teatro Eva Herz, em São Paulo, os dois estão com olhares atentos aos passos dos atores Letícia Tomazella e Marcos Reis. No espaço cênico improvisado, onde cadeiras de auditório estão dispostas como se fossem objetos cênicos, os diretores sugerem ao casal determinados gestos, percursos. Lembram por vezes de pausas, em outras pedem batuques que, realizados sobre o instrumento de percussão no momento calculado, intensificam a narração de uma fábula, por exemplo.

O REI E O SAPATEIRO
Na peça A cabala do dinheiro, não são poucas as fábulas que ajudam o espectador a entender os conceitos do livro. Os atores narram a história de um rei que decide visitar o povoado mais pobre da região e conhece um sapateiro que trabalha unicamente para tirar o sustento de seu dia. Surpreso com a simplicidade daquele homem que mais parece um tolo, o rei busca atrapalhá-lo sem medir esforços, até perceber que ele próprio está desempenhando o papel de tonto. “A gente sempre está pensando em ter dinheiro para viver com abundância, ganhar o suficiente para garantir a segurança de um, dez, 20 anos. Mas quem trabalha alegremente para tirar o sustento do dia sem paranoia vive com maior abundância do que as outras pessoas que ficam pensando no que irá faltar”, explica Nilton.

O rabino, que foi procurado por Letícia Tomazella há cerca de três anos, acompanha desde então os passos para a adaptação de seu livro. O primeiro encontro aconteceu em uma padaria em São Paulo, momento em que a jovem atriz, na época com 27 anos, se via diante dos impasses entre a escolha em seguir a carreira artística e a necessidade de pagar as contas. “Sentia que tinha muitos talentos a serem desenvolvidos, muita energia para trabalhar, mas vivia com muitos problemas materiais”, conta Letícia, que por conta disso passou a pesquisar mais a fundo sobre o assunto e deparou nesse percurso com A cabala do dinheiro. “Nesse dia, o Nilton me disse que a escassez que me atravessava já continha a prosperidade, porque, se eu não tivesse passado por um momento de tanta falta, o livro não teria me tocado dessa maneira e eu não ia pensar em tocar esse projeto”, ela lembra.

Da mesma forma, o casal de atores chegou até Clarice Niskier, que comprou a ideia do projeto sem nunca ter visto Letícia nem Marcos em cena. Casados na vida real, eles vivem na ficção uma relação que transita entre polos opostos que se atraem: ela interpreta uma mulher cartesiana; ele um homem sonhador, mas que explica, logo de início, que “não há torá sem farinha nem farinha sem torá” – torá é o conhecimento, e a farinha os bens materiais.


PLATEIA DE AMIGOS
A dramaturgia, que fala sobre o mistério da abundância e da escassez, da dança entre o ter e o não ter, foi escrita por Marcos e Letícia, e contou com a supervisão de Clarice, que ajudou a lapidar o conteúdo. Nilton também foi convidado para ouvir a leitura em suas diferentes versões e sugeriu, inclusive, que os atores se desprendessem do conteúdo do livro. No último encontro, o autor enumerou fábulas de outros livros, como do seu Ter ou não ter, e muitas delas foram incorporadas ao texto. “Nilton ilumina o dinheiro, esse símbolo que se transformou em algo maldito, fonte de corrupção, barbárie, discórdias e guerras, e mostra que esse mesmo símbolo nasceu de um desejo humano de justiça e equivalência com o objetivo de sofisticar as relações humanas. E nesse sentido se torna muito importante falar sobre isso agora, pois a causa de tudo não é o papel, mas o que nós projetamos nele”, explica Clarice. André Acioli complementa: “Acredito que os assuntos que são tratados nessa peça cairiam como luva em qualquer momento que ela fosse realizada. Mas claro que, hoje em dia, em tempos de crise, o que deixa todos com uma preocupação focada nas finanças, terá uma tensão especial”.

Ainda era junho, desta vez um domingo de manhã, e as cadeiras pretas de auditório estavam dispostas em linha, de frente para o cenário improvisado, que já dispunha de uma porção de sacos de farinha, mas contava ainda com prateleiras imaginárias. Diante de um público de amigos, todos convidados para assistir à peça ainda em construção, como forma de realizar um balanço do processo até aquele momento, os atores encenaram parte da dramaturgia que já estava montada e leram outra metade cujo texto ainda não estava totalmente memorizado. Na plateia, Clarice Niskier prestava atenção desmedida, por vezes sorria, em outras gargalhava e parecia mesmo emocionada.

Não foi a única. Ao fim da apresentação, o ator Elias Andreato comentou o que viu, embargou a voz e conteve o choro. “Estou muito tocado não só por essa discussão ser muito pertinente no país, é tudo muito pessoal. Acho lindo do ponto de vista artístico, do questionamento, das escolhas, e me vi em muitos momentos pensando nessas escolhas que fiz como artista. Quando a gente fala de teatro, a gente quer ser útil e cumprir o nosso papel de doar alguma coisa. Acho que esse é um espetáculo que doa”, ele disse.

O sentimento externado por Elias talvez seja mais facilmente entendido por uma declaração da própria Clarice antes da encenação: “Escolho textos que tenham a ver com a minha voz. E esse algo que a voz revela é, antes de tudo, a impressão da alma”.