A razão e a sensibilidade que a escritora Jane Austen (1775-1817) costumava exigir nos seus romances populares, nos quais apareciam limitações que tolhiam a condição feminina, às vezes parecem ausentes em nossos dias. Quando se acha que a evolução dos costumes finalmente alcançou em sua totalidade o dia a dia da mulher, verifica-se que ainda não, que há muitas arestas a serem aparadas. Entre elas, o viver de forma plena um amor recíproco em que exista imensa diferença de idade entre os pares, em especial quando elas são bem mais velhas que os homens. Essa dificuldade, que ganhou realce na mídia quando da recente eleição do presidente francês, Emmanuel Macron – casado com Brigitte Macron, 24 anos a mais do que ele –, é abordada em Fala comigo, que tem como protagonistas uma mulher de 43 anos e um rapaz de 17. No filme, programado para estrear neste mês nos cinemas, a angustiada Ângela, recém-separada do marido, vive uma correspondida paixão com Diogo, filho da psicanalista com quem se trata. A repressão maior vem da própria mãe do rapaz.

À primeira vista, neste tempo aparentemente menos conservador e que inclui maior empoderamento feminino, o conflito pode parecer forçado ou desprovido de significação. Afinal, já existem muitas manifestações artísticas com esse tema, como os filmes Adúltera, Lição de amor e Chéri, adaptados dos livros clássicos de Raymond Radiguet, Mário de Andrade e Colette. Os três têm histórias ambientadas em outras épocas. Adúltera, que é a versão mais conhecida do romance de Radiguet, acontece durante a Primeira Guerra na França, quando uma enfermeira, cujo noivo luta no front, se relaciona com um estudante mais moço e fica grávida dele. Lição de amor se passa no Brasil dos anos 1920 e descreve a forte paixão de um adolescente por uma alemã madura, contratada pelo pai para iniciá-lo na sexualidade. Chéri ocorre na belle époque francesa e centraliza-se no caso amoroso entre um homem com 20 anos, filho de uma cortesã aposentada, e uma colega dela com 49, interpretada por Michelle Pfeiffer. A bela atriz também vive situação similar no contemporâneo Nunca é tarde para amar, trama na qual sua personagem se apaixona por um jovem ator que conhece no entorno do filho.

Mesmo não sendo original no tema, Fala comigo suscita reflexões a respeito. Nenhuma das criações citadas acima ou outras semelhantes influenciaram o brasileiro Felipe Sholl na concepção do filme, seu primeiro longa, escolhido pelo júri do 16º Festival de Cinema do Rio de Janeiro como o melhor do certame. “No filme do Todd Solondz [Felicidade, de 1998], o personagem interpretado por Philip Seymour Hoffman telefona para mulheres desconhecidas e se masturba. Esse foi o ponto de partida do [personagem] Diogo, que liga para as pacientes da mãe e se masturba. Mas a história dos dois foi surgindo à medida que eu escrevia. Quando comecei a fazer o roteiro, não imaginava que ele e Ângela acabariam ficando juntos”, conta.

Apesar de alguns senões no ritmo, Fala comigo transmite verdade graças, principalmente, às atuações de Karine Teles e Tom Karabachian. Eles garantem também uma alegre sensualidade. Nessa franqueza, a reação da psicanalista Clarice soa discutível. Interpretada por Denise Fraga, tem uma conduta raivosa pouco coerente com o saber de sua profissão. Algo similar ao que Meryl Streep expunha na comédia Terapia do amor, quando descobre que sua paciente de 37 anos namora seu filho, de 23. “A Clarice é uma analista brilhante. Mas, no momento em que ela vê o filho dela metido numa situação potencialmente perigosa – e na cabeça dela existe perigo, a Ângela pode de fato machucar o Diogo emocionalmente –, não tem Freud, não tem Lacan que ajude. Neste momento, ela é só uma mãe desesperada que acaba metendo os pés pelas mãos”, justifica Sholl.

O fato é que, seja como espectadora externa ou vivendo essa situação, parece que o preconceito costuma ser mais intenso entre as mulheres. A opinião é partilhada pela antropóloga Mirian Goldenberg, autora, entre outros, do recém-lançado Por que os homens preferem as mulheres mais velhas?. “Na lógica da dominação masculina, os homens devem ser sempre superiores: mais velhos, mais altos, mais ricos, mais escolarizados, mais poderosos. Quando homens e mulheres invertem essa lógica, ameaçam todos os que reproduzem a ideia de que o homem deve ser sempre superior.”


Esse espectro da conduta masculina também é apontado por Dolores Prades. Publisher da revista Emília, doutora em história econômica pela USP e especialista em literatura para crianças e jovens pela Universitat Autònoma de Barcelona, ela afirma que, na visão geral, “o homem pode tudo, inclusive sair e namorar com mulheres muito mais novas, o que, aliás, virou uma regra. O estranhamento que isso pode acarretar nunca é igual ao de uma mulher mais velha namorando um homem mais novo. E, nisso, há um machismo às avessas, porque as mulheres se colocam também nesse papel absolutamente conservador de aceitar ‘as coisas’ como devem ser. Desde quando? Por quê? É o que se perdeu no meio do caminho. Mas, a meu ver, a explicação reside nessa posição da superioridade masculina. É incrível pensar que, neste começo do século 21, ainda discutimos questões levantadas pelo movimento feminista das décadas de 1960 e 1970”.

Dolores tem experiência própria: há 17 anos vive com Rodrigo Vilela, diretor executivo do Espaço Cultural Porto Seguro e 23 anos mais jovem. Ela concorda que a principal dificuldade da mulher quando começa a viver essa situação é “assumi-la publicamente, enfrentar os preconceitos de todos os lados. Isso porque são muitas as esferas em que eles se manifestam: família, amigos, trabalho. Não é apenas questão de você encarar essa relação com naturalidade, há sempre uma satisfação a dar, porque há sempre um olhar diferente e porque, afinal, estamos inseridos no mundo”.

TEMOR E TRANQUILIDADE
Nas pesquisas para o recente livro, Mirian Goldenberg percebeu que os dilemas íntimos para viver esse amor são maiores entre as mulheres. “Mais inseguras, elas têm maior medo do olhar dos outros. Já os homens sofrem menos e não interiorizam as acusações e preconceitos. Eles parecem aceitar mais a diferença de idade ou até mesmo nem enxergar a diferença.” A escritora lembra ainda que, no início da relação, o temor das mulheres pode ser maior porque “acham que é algo provisório, que serão trocadas por parceiras mais jovens. E tem o pânico de envelhecer. Só com o tempo e com a certeza de que o amor deles é realmente especial, elas passam a ter mais segurança”. Nesse sentido, Dolores Prades concorda: “No meu caso, tirando o susto inicial, pois sempre é um susto, e frente à decisão de ficarmos juntos, as coisas andaram tão naturalmente que a diferença de idade não foi em nenhum momento uma questão”.

Paulo Marcel, há dez anos companheiro de Grace Gianoukas e diretor executivo do espetáculo Terça insana, que ela criou e apresenta desde 2001, corrobora a ideia de que o homem tem menos obstáculos. “Não encarei frente a frente uma situação de preconceito, mas já vivenciei algumas situações desconfortáveis no início, da parte de algumas pessoas ligadas a Grace.” Diante da diferença de 12 anos, a atriz não sentiu nenhum preconceito. “Talvez exista, mas não sou muito ligada no que os outros acham de mim. Precisa ser muito direto e maldoso para me dar conta.” Mas reconhece que, no meio artístico, “às vezes, as pessoas andam mais preconceituosas do que em outros ambientes, porque, hoje, estão um pouco carentes de realizações pessoais e frustração gera interesse na vida alheia”.

De fato, casais de celebridades nessa condição despertam realce midiático. Haja visto as uniões no passado entre Ashton Kutcher e Demi Moore, nos Estados Unidos, e da apresentadora Marília Gabriela com o ator Reynaldo Gianecchini, no Brasil. Ambas tinham filhos com idades próximas às de seus parceiros. A atriz Gloria Grahame (1923-1981) também causou escândalo na Hollywood de 1960, quando, com 37 anos, casou-se com Anthony Ray, 15 anos mais novo e filho do ex-marido dela, o cineasta Nicholas Ray. Agora, a bola da vez é o presidente da França. “O caso Macron-Brigitte foi maravilhoso para discutir os tabus a respeito dessa escolha amorosa”, frisa Mirian. A seu ver, nessa evolução, importante “é as mulheres serem mais independentes economicamente. Elas não precisam do provedor, do protetor. Elas podem escolher mais. O valor delas não está na condição de terem um homem superior, mas está nelas mesmas”.

Dolores não nega essas conquistas nas últimas décadas obtidas no trabalho, como arrimo de família ou profissionais de ponta. Mesmo assim, são menores as suas expectativas “neste século, que, infelizmente, expõe as piores facetas políticas e sociais, pois o que tem se mostrado é uma reação mundial a tudo que cheire a mudanças reais, não apenas no status quo, como na garantia e manutenção das melhores tradições da família e da propriedade. A reação conservadora é hoje global, esses obstáculos existem e se radicalizam na medida em que novos comportamentos corajosamente se afirmam. Isso é o lado bom, as novas gerações veem a vida diferente mesmo e com isso imprimem comportamentos distintos, opostos aos que estão aí”.

O importante é que sentimentos como os que são abordados no filme Fica comigo, pelo livro de Mirian e por nossos entrevistados a cada dia encontrem um clima melhor, menos repressivo, para que possam ser vividos plenamente, sem fragilizações. Afinal, como diz a canção de Milton Nascimento, “qualquer maneira de amor vale o canto, qualquer maneira me vale cantar, qualquer maneira de amor vale aquela, qualquer maneira de amor valerá”.