São as contradições e as fragilidades do ser humano que muito interessam à dramaturga Silvia Gomez. É assim desde o início de sua trajetória no teatro, na mineira Belo Horizonte, sua terra natal, e de onde saiu, em 2001, para residir em São Paulo. Formada em jornalismo, ela veio para trabalhar no Grupo Abril, onde está até hoje. Paralelamente, logo entrou no Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) como integrante do Círculo de Dramaturgia, absorvendo o máximo que pôde da convivência com Antunes Filho. Lá ainda, em 2008, escreveu e viu ir à cena seu espetáculo O céu cinco minutos antes da tempestade, dirigido por Eric Lenate, sobre uma enfermeira entregue aos psicotrópicos. Mas foi sete anos depois que Silvia alcançou prestígio, ao escrever a premiada Mantenha fora do alcance do bebê – também com encenação de Lenate –, peça que foi protagonizada por Débora Falabella. A trama, um tanto surrealista, debatia sobre como o ser humano deixou de ser ele próprio para se tornar uma espécie de máquina, frio, doentio e autoprogramado. “O teatro vive do conflito, dessa linha de embate necessária para as coisas acontecerem”, apregoa.

Agora, a partir deste mês de junho, nossos conflitos voltam ao tablado do Auditório do Masp, em São Paulo, em mais um texto da dramaturga. O nome do espetáculo é Marte, você está aí?, fazendo alusão tanto ao nome do planeta, com o qual uma das personagens batiza um cão, quanto o desejo de fuga para viver num outro lugar – não fossem o solo árido e o ambiente gélido do planeta vermelho. Em perfeita sincronia com a crise social e política que o Brasil está a atravessar, a peça mostra uma militante (Michelle Ferreira) que, mesmo ferida e perseguida pelas autoridades, se prepara para uma manifestação definitiva e sua mãe, uma mulher profundamente marcada pelos traumas físicos e psicológicos provocados pela ditadura militar, escondida por uma máscara de felicidade, mas irrecuperavelmente transtornada. Essa mulher é vivida pela célebre atriz Selma Egrei, que empresta tamanha sensibilidade à construção da personagem. Com mais de quatro décadas de trajetória na arte da interpretação, Selma acredita que toda crise leva à evolução, mas confessa se assustar com os radicalismos que ganham campo. “Não é em relação ao nosso país apenas, é mundial. A gente está vivendo um perigo enorme de retrocesso”, diz ela, que acredita que sua personagem, chamada na peça de NC, “representa todas as dificuldades que o ser humano passa, todas as correntes de amarras, muralhas. Vejo esse desamparo dela dessa forma, vivenciando todos os bloqueios que teve na vida, físicos, psicológicos; e não só referentes ao que ela viveu e vive socialmente, mas ao que ela vive internamente”.

Bela e vivendo plenamente a maturidade, Selma, que encontrou enorme sucesso no cinema brasileiro dos anos 1970, embora em muitos dos títulos ela se arrependa de ter atuado, abandonou as câmeras e os palcos por uma década, tendo vivido na Europa, nos anos 1990, onde foi estudar e trabalhou como terapeuta corporal. No fim dessa década em questão, voltou à cena, e não parou mais, tendo grande foco sobre sua figura especialmente depois de atuar nas temporadas do seriado Sessão de terapia e Felizes para sempre?, o primeiro dirigido por Selton Mello e o segundo por Fernando Meirelles. “Tenho muita gratidão por tudo, gratidão por viver, isso é fundamental. E, como todas as pessoas, tenho saudade das coisas boas vividas, mas não tenho nostalgia. Procuro me posicionar no agora e no que virá.”

É com Silvia Gomez e Selma Egrei esta entrevista a seguir. Tudo enquanto o asfalto da cidade arde com coquetéis molotov e, no céu, estilhaços de asteroides desenham linhas.


Marte é, ao mesmo tempo, o nome dado a um cão, mas, como o texto engloba elementos do teatro do absurdo, fica a sensação também de Marte ser o ponto de fuga, caso lá pudesse ser habitado, um tipo de alusão à Pasárgada, de Bandeira. O que acha?
Silvia Gomez: É como se a nossa Pasárgada atual, a Pasárgada que é possível para a gente, fosse esse lugar horrível, esse lugar árido, com tempestades de ventos de 100 quilômetros por hora. E Marte já foi um dia um planeta com uma atmosfera linda e habitável. Essa peça fala dessa sensação meio de fim de mundo que estamos vivendo. O mundo como a gente o conhece precisa terminar, precisa ser expurgado para se construir um novo. É tão maluco porque li em uma reportagem que já estão planejando mandar pessoas para Marte até 2050, para ver se revertem a atmosfera para torná-la habitável de novo e podermos ir para lá [a Nasa anunciou no fim de 2016 que pretende levar seres humanos ao planeta vermelho entre 2030 e 2050 com a intenção de formar colônias definitivas por lá]. É muito louco, porque é a gente admitindo nosso fracasso neste planeta. Por que não conseguimos fazer um acordo global pelo meio ambiente, uma aliança para continuar existindo aqui? Por que não conseguir essa Pasárgada aqui?
Selma Egrei: A personagem que faço chega a dizer que quer um lugar melhor, seja no espaço, em Marte, mas uma vida melhor. É uma fuga, uma busca desesperada que o ser humano faz, e a gente mostra isso na peça, o querer acreditar que pode existir uma vida melhor, que existe esse lugar se aqui está difícil de consertar.

Há muito se discute o papel efetivo da arte. De um lado, ela traz beleza ao planeta, mas não impede nenhuma das catástrofes que vemos acontecer. Existe ainda, na opinião de vocês, essa utopia de salvar o mundo com a arte?
Silvia: Acho que a gente não salva nada mesmo, a arte não tem a pretensão de salvar nada nem mudar o mundo. Acho que a arte existe porque, como dizia Ferreira Gullar, a vida não basta. E ela, embora não mude nada nem salve ninguém, por alguns minutos, enquanto temos a sensibilidade provocada por ela, gera-se uma luz, uma esperança, geram-se pequenas empatias. Por exemplo, quando a gente vê uma pessoa que lê muito, percebe-se que ela se questiona mais. Então, quanto mais você lê, mais se sensibiliza, mais questionamentos você coloca para o mundo, você deixa de ter certezas absolutas. E acho que a pergunta é uma das coisas mais saudáveis que a arte pode fazer pela gente, mais do que respondê-las. Quando você levanta perguntas, já está no caminho de mudanças. E, a partir dessas dúvidas, a gente tentar encontrar caminhos diferentes.
Selma: E ela serve para mais coisas que a gente nem alcança ainda. Ela foi criada para poder tornar o ser humano melhor, fazer com que ele se conecte com o que tem de melhor em si, no outro e no universo. É uma forma de superar realidades conturbadas nas quais se vive, prisões, ignorâncias, e poder se elevar e entender que existe um universo maior, mais profundo a ser alcançado. Arte é o fundamento da vida, é impossível existir vida sem ela. Até na natureza a gente vê isso, seja num pássaro, seja numa flor.

Silvia, o que é ser dramaturga?
Para mim, ser dramaturga tem muito a ver com exercitar a empatia e a alteridade, coisas que a gente precisa muito no mundo hoje. É essa coisa de também tentar estar no lugar do outro, se colocar dentro da pele, vestir o casaco do outro, virá-lo do avesso e expor as entranhas. É ouvir o que aquele outro diz e o que tem a ver com o mundo de hoje. Para mim, ser dramaturga está ligado também com o ser cronista de nosso tempo. Eu queria muito olhar para as coisas que incomodam e falar delas. Não queria usar o teatro como um lugar apenas para a recreação. Sempre encarei o teatro como o lugar de encontro das pessoas e de estarmos juntos para falar de coisas profundas e olhar de verdade o mundo que está ao nosso redor. Então, ser dramaturga é olhar para o entorno, para nosso tempo e para as pessoas do nosso tempo.


E ser atriz, Selma, o que é?
O que é mais forte para mim no ser atriz é poder ser um veículo para colocar, discutir e amenizar as dores do mundo. Acho que, através da figura do ator, você se vê representado ali, sabe que não está só no mundo com seus sofrimentos e angústias, e percebe que isso pode ser vivenciado de forma mais grupal, o que, de alguma forma, dá mais alento às pessoas. Então, vejo meu trabalho por aí. E claro que tem também o lado de poder me expressar, me sentir viva, manifestar minhas dores e minhas angústias.

De modo geral, sinto que seus textos são sempre sobre seres humanos fragilizados pela própria existência ou incertos se vão encontrar o que buscam. Nesse novo espetáculo, por exemplo, isso se mostra muito enfaticamente.
Silvia: A gente é isso, o teatro é o lugar que fala dessa precariedade de ser humano, de estar à mercê, basta olhar o que está acontecendo em nosso país. A gente se sente à mercê de tantas coisas, por mais que a gente queira mudar, que diga “vamos fazer”... Acho que Marte tem esse questionamento. É possível mudar as coisas? E a personagem fala: “Vem, esteja aqui amanhã, nós precisamos mudar as coisas”. Aí ela sai e diz: “Não, não venha aqui amanhã, vá para casa, tome um banho, vá dormir. Ninguém é capaz de mudar nada”. Aí ela volta e repete: “Venha amanhã, nós podemos mudar as coisas. Esteja, sim, amanhã”. Então é essa contradição que a gente vive. É obvio que é preciso mudar as coisas, é óbvio que depende de nós. E onde se reúne forças para isso? Que preço se paga? Que preço essas mulheres e homens que passaram pela ditadura pagaram para termos a liberdade de estar aqui tomando um café, conversando livremente?

Inclusive para aqueles que fazem comentários ignorantes na internet e ainda pedem o retorno dos militares.
Silvia: Exatamente. Você sabe o preço que custou? Custou sangue. Então, a gente tem de olhar para a história, e é nesse sentido que falo sobre a empatia no teatro, que é olhar para dentro do outro. Quando você olha de dentro do corpo do outro, você consegue ter uma dimensão. E o teatro, a arte de modo geral, tem esse lugar de tentar olhar por dentro do corpo do outro. Você pode sair do teatro e ir comer uma pizza e esquecer tudo o que assistiu, você pode sair de uma exposição e esquecê-la, mas, por um segundo, ela te tocou e faz com que tudo possa ser diferente.


Inclusive, Selma, você atravessou a ditadura militar e vivenciou a época da censura. Te assusta ver essas pessoas que parecem desconhecer o que foi a ditadura militar neste país?
Selma: Assusta mais porque não é em relação somente ao nosso país, é mundial. A gente está vivendo um perigo enorme de retrocesso, essa amarra que grandes poderes fazem com a massa, de conseguirem transformar essa massa em totalmente irracional, para aceitar o que eles propagam como se fosse a verdade. É um grande perigo.

Sua personagem, aliás, está rodeada pelos traumas deixados pela ditadura e é mãe de uma militante nos tempos atuais. Como se dá isso?
Selma: O texto da Silvia é muito rico. Tem a analogia com o que a gente está vivendo, tem toda essa questão política e rememora tudo o que a ditadura e as torturas significaram. Mas vejo o desamparo da minha personagem de uma forma mais ampla, vejo como a representação de todas as dificuldades que o ser humano passa, todas as correntes de amarras, muralhas; é ela vivenciando todos os bloqueios que teve na vida, sejam físicos ou psicológicos. Talvez uma criatura em estado de alerta final, não suportando mais a vida. Então, ela dialoga e, ao falar, mistura passado e presente. Está totalmente desequilibrada, extremamente frágil e construiu uma persona que socialmente é muito alegre, muito bem realizada, muito feliz, e essa é a forma que ela tem para se defender da fragilidade que vive profundamente. Então, durante o espetáculo, procuro fazer de forma que ela se desmonte totalmente e se abra para falar de verdade sobre o que vive e sente.

Como vocês observam essa falta de tolerância na relação humana?
Selma: Todo radicalismo e todo totalitarismo são um sinal de ignorância, de cegueira. Já tivemos cegueiras de vários povos, de várias religiões, de várias sociedades, e essa cegueira atual precisa ser superada, porque não dá para viver com ódio. É preciso respeitar as diferenças e amar a vida, amar a si mesmo, amar o outro.
Silvia: Esse assunto tem me horrorizado muito, principalmente quando você vê que as pessoas não estão sendo capazes de se colocar no lugar do outro, de fazer esse exercício. Me desespera ver essa tirania de todos os lados, o tal Fla-Flu. Ou você é da esquerda ou da direita, ou você é mulher ou é homem, são oposições que exigem que você só esteja de um lado. Tenho muitas desconfianças com formas de tiranias, e a gente consegue ver essas polarizações. São fruto de tiranias, e, quando elas começam a ficar muito fortes, passa a se formar um terreno propício para um governo radical. Temos de tomar muito cuidado. E não estou vendo também a tentativa de se olhar para a complexidade que as coisas têm, porque as pessoas são complexas, as pessoas são contraditórias. Às vezes, quero uma coisa e, em outro minuto, estou ali fazendo outra. Fico pensando em como a gente vai mudar isso.
O espetáculo Marte, você está aí? vai um tanto por esse questionamento, correto?
Silvia: Acho que um pouco. Ele levanta essas questões e pergunta: por que você tem de estar de um lado só? Por que não olhar para as coisas de formas mais complexas? Por que não olhar para o outro de forma mais complexa? O espetáculo provoca isso.


O teatro é uma arte de resistência. Vocês concordam com isso?
Silvia: Eu trabalho como jornalista para me sustentar, não ganho dinheiro com teatro, mas faço dele um lugar de resistência, de fazer as coisas em que acredito, meio minha utopia, esse lugar de falar das coisas que incomodam, de tentar sair um pouco dessa barulheira. O lugar da arte é esse terreno híbrido, essa lama sobre a qual a gente anda, esse lixo no qual a gente precisa colocar as mãos sem luvas. É quase uma revolução você estar em um teatro e fazer com que as pessoas sentem juntas para aquele momento, em silêncio. Saúdo essas pessoas, porque elas estão lá buscando uma resposta. Também acho que sempre estamos tentando nos salvar e, para isso, nos agarramos a coisas diferentes, à religião, à dieta sem glúten... Estamos tentando nos salvar do que sabemos que vai acontecer com a gente, que é morrer. Minhas personagens estão sempre em uma linha, uma corda esticada ao máximo. É como se elas estivessem em uma situação sempre limite e falassem coisas perigosas.

Todavia, o teatro continua sendo frequentado por uma minoria que tem a possibilidade de pagar por ele. Isso não incomoda?
Silvia: Sim, dá um desespero. Penso muito no que é dramaturgia, sobre o que estamos falando e para quem. Por isso a importância dos editais e políticas públicas de incentivo ao teatro, para levá-lo para fora dos grandes centros onde já é esperado. É muito importante batalhar por editais para que as peças acessem outro público que não pode pagar para assistir. E dá uma angústia ver a educação no Brasil. Como disse Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. E vemos o resultado disso tudo. Se você não tem informação, você é mais manipulado. Dá um desespero de pensar que nosso caminho é muito longo e que a gente precisa ainda do básico. Só com educação podemos crescer, ser uma nação crítica. Estamos falando de arte aqui e somos dois privilegiados por podermos falar sobre esse assunto. Mas por isso vamos deixar de falar das coisas que incomodam? Não, temos de falar e tentar mudar isso. Muito boa a frase do Criolo que diz: “Mudar o mundo do sofá da sala e postar no Insta/E se a maconha for da boa que se foda a ideologia”. É bem essa contradição da nossa geração privilegiada, classe média, que pôde estudar decentemente. Queremos mudar, temos esse desejo, mas será que não estamos dormindo no sofá da sala?
Selma: Não dá nem para discutir apoio de um governo que não está dando conta nem da saúde, da segurança, de uma tentativa de salvar o meio ambiente. Estamos vivendo um desastre tamanho, mundial... Teatro sempre existiu e sempre existirá como manifestação cultural. E sempre houve essa dificuldade com o teatro. Sempre que passamos por crises políticas e sociais, mais essa dificuldade vem à tona, de não ter o apoio necessário do governo para que se possa levar o teatro ao povo. Eu já participei como atriz de teatro de rua, de teatro gratuito para poder levá-lo para todas as pessoas, mas não dá para viver assim. Se a gente quiser viver dele, precisa de apoio, das leis de incentivo.

Vocês acreditam em um futuro melhor seja em qual planeta for?
Silvia: Eu preciso ter esperança, porque tenho um filho, mas minha natureza é a de uma pessoa inflamada, sou um pouco nervosa e pessimista, mas estou no mundo e a gente precisa mudar as coisas. As pessoas não podem caminhar para a aceitação de ideias tão intolerantes, a aceitação de políticas tão injustas. A gente tem de ter essa grandeza, de se colocar dentro dessa humanidade, precisa ter um esforço por esse lugar, que é maior e que precisa ser maior do que só a gente. Precisamos aprender a chegar juntos a soluções.
Selma: Esperança tenho sempre. Acho que, quando acaba a esperança no ser humano, ele morre, ele vegeta. Se não há esperança de poder mudar a si mesmo, ao outro e ao mundo, a vida não tem sentido. Acho que a gente está aqui para poder realizar, construir, e se a gente não acredita que algo poderá ser feito, a vida morre. Eu pretendo não chegar a isso e manter uma fé, uma esperança, uma confiança, um amor até o final.