Em 2007, quando o bailarino, coreógrafo e ator iraniano Afshin Ghaffarian tinha 20 anos de idade, ele e sua companhia clandestina de dança da época enfrentavam a opressão de uma lei que continua vigente em seu país natal: a proibição da dança em locais públicos, prática que fere as regras de modéstia e recato pregadas pelo Alcorão. Para se apresentarem, enganaram a censura e se locomoveram 200 quilômetros para longe da capital, Teerã, para o meio de um nada, convidando apenas pessoas de confiança para assisti-los. Dois anos depois, após a reeleição, com suspeita de fraude, do candidato conservador Mahmoud Ahmadinejad, o artista aproveitou o convite recebido pela organização de um festival alemão de teatro, furou o bloqueio da força nacional, que estava no aeroporto impedindo as pessoas de saírem, e emigrou, indo para a Alemanha e, depois, para a francesa Paris, onde ganhou o direito de ficar como exilado político.

Nos próximos dias 1º e 2 de julho, Ghaffarian se apresenta em São Paulo com os espetáculos O grito e Uma solidão ruidosa, integrando o Cortina fechada – Territórios da arte, mostra realizada pelo Sesc. Em conversa com a Revista da Cultura, ele conta que, independentemente de quem cada um é e onde está, a criação artística precisa ser contínua. “Através de nossa criatividade, temos de inventar o mundo em que queremos viver, apesar de todas as dificuldades. Temos de procurar novas soluções de estar no mundo. Para existir, precisamos resistir e, para resistir, precisamos criar. Deve ser uma luta permanente para todos nós, a fim de criar um mundo melhor juntos”, diz ele, que em 2014 renunciou ao exílio e, no ano seguinte, voltou ao país de origem para trabalhar em um projeto teatral. Hoje em dia, mora na França, mas sem ser refugiado político. “Carrego minha cultura e minha história no corpo. A maneira de me expressar está amarrada às experiências vividas, em contato constante com outras culturas em todo o mundo. A forma como me expresso no palco deve ser vista em um contexto mais amplo, e não apenas confinada ao Oriente Médio”, define ele, cuja história inspirou o filme O dançarino do deserto, longa-metragem mal recebido pela crítica e o primeiro do diretor britânico Richard Raymond – a estreia no Brasil foi em 2015.

Para o bailarino, existem diferentes formas de censura em todo o mundo, algumas delas aplicadas de forma vertical, pelas leis e normas do Estado, como no caso do Irã; outras, mais discretamente, como a lógica de mercado ocidental. “Obviamente, não tenho as mesmas limitações para me expressar aqui na França se comparado ao Irã, mas isso não muda o fato de que ser um artista é uma tarefa muito difícil, não importa onde vivamos. As restrições são diferentes e a censura se aplica de maneira diferente nos dois países.”

Hoje, com 30 anos, Ghaffarian diz que seu modo de enxergar o mundo mudou drasticamente, assim como a situação política do Irã. “Não sou mais um jovem artista revoltado, e sim um homem maduro que busca soluções. Em vez de amaldiçoar a escuridão, agora tento acender uma vela.” Naquela época abordada no filme, julga que foi influenciado pelas narrativas propagadas por certos meios de comunicação que retratavam o governo iraniano como a causa única de todos os problemas do Irã, do Oriente Médio e, parcialmente, do mundo. “Hoje, lamento como desperdicei tanto tempo ouvindo esses argumentos infundados. Infelizmente, essa narrativa sobre o Irã ainda está sendo produzida. É claro que o sistema político iraniano não é de modo algum perfeito, no entanto, a República Islâmica é a entidade política legítima do Irã, e eu sou cidadão deste país.”

Em 2013, no exílio, decidiu pela primeira vez participar do processo democrático iraniano, votando no presidente atual, Hassan Rohani. A distância proporcionou uma perspectiva mais realista de seu país natal. “O exílio foi um privilégio, pois me permitiu olhar objetivamente meu país em sua totalidade, aguçando minha observação do mundo e do meu lugar dentro dele.”

Já neste 2017, voltou ao Irã para uma visita a amigos e parentes. Não teve problemas com a polícia desta vez. “Nunca devemos esquecer que a liberdade não é um produto. Uma vez adquirida, não é para sempre. É uma prática diária e uma luta para todos em todo o planeta.”

DRAMATURGO DO DESERTO
Vivendo em Berlim e premiado internacionalmente, o dramaturgo Nassim Soleimanpour é outro iraniano que precisou encarar a realidade da censura em seu país de origem – ou, sendo mais específico em seu caso, não enfrentar. Como nunca concordou em submeter seus textos à análise [dito censura] do Centro de Arte Dramática, órgão ligado ao Ministério da Cultura do Irã, nenhum espetáculo seu chegou a ser levado à cena lá. Todavia, a alta procura por grupos teatrais estrangeiros fez com que seus textos fossem traduzidos para 20 idiomas e o autor ganhou prêmios internacionais.

O dramaturgo esteve recentemente no Brasil para acompanhar apresentações de espetáculos com textos seus, tanto no Festival de Teatro de Curitiba quanto na mostra Cortina fechada – Territórios da arte, na capital paulista. Viu em cena Em branco e o monólogo Coelho branco, coelho vermelho. Este último, que no Brasil foi interpretado pela atriz Georgette Fadel, foi escrito em 2010 e faz várias alusões à censura iraniana – em certo trecho do texto, ele escreve: “Tenho de tomar cuidado quando escrevo, ando, falo e bebo. São as regras do circo”. No entanto, em entrevista exclusiva para a Revista da Cultura, Soleimanpour enfatiza que a censura é um mal que se apresenta de diferentes modos, seja explícita por órgãos governamentais, seja por organizações que trabalham com formas de poder. “Já sofri com a censura no Oriente Médio, mas também fui censurado no Ocidente. Uma vez, na Irlanda, quando nos apresentamos numa igreja, nos obrigaram a cortar trechos do texto que consideravam ofensivos”, conta ele, que nasceu em Shiraz, cidade no sudoeste do Irã, e é filho de uma artista plástica e de um escritor.

As peças de Soleimanpour não têm direção nem ensaios. A cada dia, um ator diferente interpreta o texto em uma leitura à primeira vista. “Esse estilo fortalece o ofício de representar e os perigos que isso acarreta. Uma certa mistura entre o palco e a vida no sentido da responsabilidade de cada escolha. Essas escolhas podem ser inofensivas, mas não há garantias, nem no palco nem na vida”, argumenta Georgette Fadel logo após sua performance em Coelho branco, coelho vermelho. Para ela, as peças do iraniano brincam em um limiar do encontro entre o autor, o ator e o público. “Ele não teve a possibilidade de um contato direto para dirigir o espetáculo, então, dirige através da palavra. Dá para sentir o espírito dele povoando o texto como se fosse um ser humano ali na sua mão, sabe?”

O dramaturgo conta que sua intenção não é criar um espetáculo de improviso, tanto que existem frases para guiar os atores. Ele prefere fazer alusão a uma máquina, como um carro, por exemplo, ao dizer que a velocidade com a qual ele será dirigido e a direção dependem de quem estará em cena a interpretar. “O ator tem de ler o texto como se fosse um roteiro, senão ele se perde e a atuação fica sem sentido. No momento da leitura, ele pode adicionar frases, piadas com um temperamento próprio. Como ele atuará é uma escolha própria”, explica.


FOTO NIMA SOLEIMANPOUR