Três crianças correm para casa depois de saírem da escola. No caminho, elas encontram um garotinho com síndrome de down e param para zombar do menininho, que não entende nada do que está acontecendo. Parece cruel, não é mesmo? Um dos três garotos que praticaram bullying é Fabien Toulmé, quadrinista francês que decidiu contar sua própria história na HQ Não era você que eu estava esperando (Editora Nemo). No livro, vemos o desenvolvimento de um homem cheio de medos e preconceitos, que precisa encarar um novo e estarrecedor desafio em sua vida: o nascimento de Julia, sua filhinha com síndrome de down.

Depois do bullying dos três menininhos, mudamos o capítulo do livro e vemos um Fabien adulto, nervoso e ansioso, pois sua esposa, Patricia, está prestes a fazer o ultrassom dos dois meses de gravidez, momento em que é possível identificar se o feto é portador da trissomia 21, ou síndrome de down. Neste momento da história, a família, formada por Fabien, Patricia e a filha mais velha, Louise, está morando no Brasil e, para alívio do personagem, o exame de ultrassom, que verifica a translucência nucal do bebê, indica estar tudo bem com a criança. Passado algum tempo, a família se muda para a França, e por lá vai atrás do tratamento de Patricia. Mais uma vez, os exames também não detectam sinal algum da trissomia. A gestação segue, portanto, sem maiores problemas, até que chega o grande dia do nascimento de Julia. Depois de passar por dificuldades durante o parto, tudo corre bem para mãe e filha. Então, chega a hora de Fabien conhecer sua criança. Neste momento, ele se vê paralisado, pois percebe na filha sinais da não esperada síndrome de down, como a nuca reta e o rosto achatado. No entanto, todos os profissionais do hospital negam as afirmações de Fabien.

No dia seguinte, o personagem, ainda atordoado, recebe uma ligação urgente de sua esposa no hospital: descobriram algo diferente na Julia. “É a trissomia 21”, pensa o pai da criança. Não era. Julia nasceu com um problema no coração e precisaria ficar algum tempo em observação na UTI; além disso, ela teria de ser operada antes de completar um ano de idade. Seria muita crueldade sentir quase um alívio ao saber que era “apenas” um problema no coração, e não a síndrome de down? Pois foi isso o que Fabien sentiu no momento, logo seguido pela culpa.

Alguns dias se passam e, em uma conversa com a médica, o pai descobre que o problema que a filha tem no coração é muito comum em crianças com trissomia 21: é o caso de Julia. Aí começa todo o desenvolver de um pai que, por preconceitos e medos, não consegue aceitar sua filha. Vemos um misto de sentimentos: raiva, dor, tristeza, vergonha, culpa, negação… Tudo. Fabien não acreditava ser possível amar Julia. Não dava. O tempo passa e, com o conhecimento e a convivência com a filha, ele logo se encanta pela menina e se vê completamente apaixonado por ela. A síndrome, então, passa a ser só um detalhe. Afinal, as “crianças-beijo”, como são conhecidas, têm muito amor para dar e é o amor o grande protagonista dessa família.

Disso surgiu a ideia de escrever o livro, que retrata com bastante honestidade os sentimentos de muitos pais quando descobrem ter um filho com a trissomia. “Pelas respostas dos leitores, muita gente que passou por essa experiência sentiu a mesmíssima coisa, mas não ousou admitir esses sentimentos, que são universais. Quando digo universal, não quero dizer que todo mundo deva sentir o mesmo, mas que é uma reação ‘normal’, faz parte do nosso comportamento de ser humano, não somos perfeitos”, diz o quadrinista à Revista da Cultura.

Uma das características mais cativantes dessa história é a forma crua e despida com que Fabien mostra o que sentiu quando descobriu ter uma filha com trissomia 21. “A princípio, pensei em usar nomes fictícios, mas talvez as pessoas fossem dizer: ‘Essa história não pode ser verdadeira, na realidade não teria acontecido daquele jeito, um pai não pode pensar assim’. Para poder transmitir emoções reais, eu tinha de ser real e assumir, como uma pessoa que existiu, o papel do pai e não me esconder atrás de um personagem de ficção. A partir daí, fui contando sem me preocupar com as reações das pessoas. Confio muito na inteligência dos leitores e na capacidade que eles têm de entender esse tipo de situação. Não posso ter vergonha do que pensei a partir do momento que não continuei com esses pensamentos ruins.”

Durante a narrativa, deparamos com sentimentos semelhantes aos de Fabien e refletimos muito sobre a forma como encararíamos a mesma situação ou sobre alguns dos preconceitos que não admitimos ter, mas que estão enraizados em nós. “Quando a gente nunca conviveu com esse tipo de situação, imagina, muitas vezes, coisas que na verdade não são bem assim. O fato de testemunhar sobre o que é ser pai de uma criança com síndrome de down, o que isso implica, mostra a verdade dos fatos. Não julgo as pessoas que têm preconceito, porque o Fabien ‘de antes’ poderia ter tido esse tipo de reação”, comenta. A história do autor estimula um grande processo de desconstrução e introspecção do leitor, que se vê a cada capítulo mais mexido pela jornada desse pai. E, quanto mais mergulhamos nesta caminhada, mais compreendemos o título do livro, que, à primeira vista, pode parecer um pouco duro. “Um filho ou a filha que temos nunca é do jeito que a gente espera. Às vezes, a diferença entre o que esperamos e a realidade é grande, como no caso da deficiência, mas nem por isso perdemos a capacidade de amar, apesar de tudo que a gente possa pensar ou temer. Por isso que o título é Não era você que eu esperava, mas o final da frase que se encontra atrás da capa é: ‘Mas estou feliz por você ter vindo’.”

A história em quadrinhos de Fabien Toulmé ajuda a desmitificar a síndrome de down e traz muita informação sobre ela, mas, acima disso, tira o peso e a pressão acerca da maternidade e da paternidade. O autor enfoca como nossas relações são construídas dia após dia e como o sentimento de amor é o grande agente transformador de nossas vidas. “Talvez, para mim, o que define mais esse livro é a força do amor, que pode transformar tudo, apesar dos obstáculos da vida.”