Entregues à dolorosa consciência do alcance da corrupção generalizada em seu país, muitos brasileiros talvez não tenham se dado conta das semelhanças entre os dilemas vividos nas eleições na França e o curso tímido das reformas no Brasil — agora sepultadas pelo esfacelamento moral do governo. No segundo turno da eleição presidencial francesa, no dia 7 de maio, os eleitores foram colocados em uma encruzilhada: ou aceitavam um presidente reformista e favorável ao livre-comércio ou abriam as portas do Palácio do Eliseu para uma líder radical que defende a intervenção do Estado e o isolamento da França.

Foi uma escolha acima de tudo pautada pelo medo, e o resultado pode ser visto como um copo dois terços cheio ou um terço vazio, dependendo da ordem dos temores de cada um. De um lado, Emmanuel Macron derrotou Marine Le Pen com a convincente margem de 66% a 34%. De outro, a candidata da Frente Nacional (FN) bateu seu recorde de votação: 10,6 milhões. Em um universo de 36 milhões de votos válidos, não deixa de ser inquietante que uma corrente política que esteve ao lado do regime pró-nazista de Vichy, que questiona o Holocausto, que se opôs à independência da Argélia e que expressa visões xenófobas e racistas possa angariar um apoio tão expressivo.

Na semana que antecedeu o segundo turno, muitos eleitores em Paris e em Hénin-Beaumont, reduto da FN no norte, me repetiram a frase “essa pessoa me dá medo”, referindo-se tanto ao centrista Macron quanto à ultranacionalista Le Pen. Eu havia ouvido essa frase ao cobrir a eleição presidencial norte-americana, em novembro, também em alusão tanto a Donald Trump quanto a Hillary Clinton.

Em cada caso, o medo tem um motivo diferente. Trump e Le Pen despertam o medo do desconhecido, da agressividade desmedida contra o outro, da impulsividade, do radicalismo. Alguns desses traços também são identificados em Macron, cujo ímpeto de modernizar a França, combinado com um senso de “missão” e uma certa obsessividade na persecução de seus objetivos de vida, dá a muitos franceses a sensação de embarcar em direção a uma tempestade. O medo de Hillary está mais relacionado com a rejeição a algo conhecido, a mais do mesmo: um casal considerado manipulador, parte de uma elite política que age como se fosse dona de um partido, das instituições, do país.

A França está na frente do Brasil no que tange ao ritmo das reformas, mas isso, francamente, não é difícil. A idade mínima para a aposentadoria é 62 anos, e seguirá subindo para acompanhar a curva demográfica. Só nos últimos dois anos, o governo socialista do ex-presidente François Hollande e do então primeiro-ministro Manuel Valls aprovou duas reformas trabalhistas, que introduziram mais flexibilidade nos contratos de trabalho e reduziram custos. A primeira foi conduzida por Macron, quando era ministro da Economia, e a segunda pela ex-ministra do Trabalho Myriam El Khomri. Cem euros de salário bruto custam ao patrão francês 140 euros (no Brasil, o cálculo chega ao redor de 200). Desses, o trabalhador recebe apenas 80. O governo Hollande criou uma desoneração de 28 euros e outros 6 euros como crédito de competitividade, para diminuir esses encargos. Mas são alívios temporários, medidas paliativas custeadas pelo Tesouro.

Macron considera que o emprego precisa ser desonerado de forma mais sustentada, principalmente no que se refere ao momento da demissão. Se, por exemplo, um trabalhador francês recebe o salário mínimo bruto de 1.500 euros (dos quais ele fica com 1.200 líquidos) por 12 anos e nove meses, tem direito a uma indenização de 4.375 euros — quase 3 salários.

Esse custo, somado aos encargos habituais, representa um desincentivo para a contratação de trabalhadores por tempo indeterminado (a lei já prevê contratos por prazo determinado), raciocinam os reformistas, sendo, portanto, uma das causas do alto desemprego de 10%, que atinge 25% no caso dos jovens. Mas as centrais sindicais se apegam a esse custo da demissão como garantia do emprego.

Eu dizia que o medo pautou a eleição, mas uma outra expressão do mesmo sentimento é o ímpeto de exclusão. O dilema entre incluir e excluir fica óbvio nos debates sobre a imigração e o comércio. Macron defendeu a manutenção do Espaço Schengen, a livre circulação de pessoas no continente europeu, ao lado de uma vigilância mais eficaz das fronteiras, para evitar a entrada de potenciais terroristas. Já Le Pen prometia uma moratória na imigração e a expulsão dos ilegais e dos suspeitos de radicalização islâmica.

São duas visões opostas de como se deve responder ao problema do terrorismo: isolando-se ou integrando. Traduzindo a questão do âmbito da segurança para o da economia, são também respostas opostas ao desemprego: excluir os estrangeiros da disputa por vagas escassas ou permitir que eles trabalhem, consumam, paguem impostos, tenham filhos, contribuam para a Previdência, e assim sejam parte da solução dos problemas econômicos da França.

Um dado revelador do mapa da votação é que a FN tem seus melhores desempenhos em cidades pequenas, onde praticamente não há estrangeiros. Inversamente, Macron se saiu melhor em grandes cidades, onde eles se concentram. Os eleitores de Le Pen votaram contra o desconhecido.

Em uma segunda vertente econômica, o debate também envolve, de um lado, aumentar a competitividade e continuar exposto ao livre-comércio ou proteger-se dele, para evitar o fechamento e o deslocamento de empresas em direção a países com custos mais baixos.

Um olhar mais de perto sobre a reforma trabalhista revela que também nela há um dilema entre incluir e excluir. A resistência contra a reforma parte daqueles que estão contratados por tempo indeterminado e dos sindicatos que eles sustentam. Essa é uma minoria organizada, com grande poder de pressão.

Mas há o contingente de desempregados e também de trabalhadores com contratos precários, que não conseguem se incluir no mercado de trabalho de forma mais estruturada por causa justamente dos encargos elevados que beneficiam os contratados por tempo indeterminado.

Eu dizia que a França está à frente do Brasil no curso das reformas, mas ela está atrás dos países com os quais costuma ser comparada: Grã-Bretanha, Alemanha e até mesmo Itália e Espanha. Digo “até mesmo” porque são países latinos, mediterrâneos, considerados menos avançados que a França.

Em seu discurso de posse, no dia 14 de maio, Macron demonstrou acreditar no potencial dos trabalhadores franceses, na sua capacidade de competir livremente com os de outros países, graças à qualidade de seu sistema de educação e outros serviços públicos. Os franceses não confiam em si mesmos, diagnosticou o novo presidente. Mas o que trava a competitividade do país não é a incapacidade de seus cidadãos, e sim as normas trabalhistas e outras intervenções do Estado que inibem a livre iniciativa e a concorrência.

É preciso, de fato, inocular uma dose de coragem nos franceses. Mas é evidente também que isso não basta. Macron não tem uma máquina partidária que lhe propicie uma base sólida e duradoura no Parlamento. Ele lidera um movimento, recém-rebatizado República em Marcha (REM). Isso não tem só desvantagens: a mesma flexibilidade que quer introduzir no mercado de trabalho ele encontrou na forma de fazer política.

Filiados a qualquer partido — com exceção talvez da FN, que seria vetado — podem militar no REM e até se candidatar sob seu guarda-chuva, para isso devendo apenas se comprometer com a plataforma do movimento e provar que não tem contas a acertar com a Justiça. Deputados e dirigentes tanto do Partido Socialista (PS) quanto dos Republicanos, de direita, aderiram ao REM para as eleições dos dias 11 e 18 para a Assembleia Nacional.

Essa, digamos, fluidez das coisas é uma das causas do medo entre uma parte dos franceses. Com todos os seus defeitos, as posições conhecidas dos partidos tradicionais ofereciam balizas ao debate. E garantiam uma certa estabilidade no sistema político. Seu desgaste levou a um segundo turno presidencial sem a presença de pelo menos um dos dois grandes partidos franceses, o PS e os Republicanos, pela primeira vez.

Os motivos desse desgaste, somados, dão um retrato da intolerância do eleitorado com as vicissitudes da política. O PS foi vítima do imenso insucesso do governo de Hollande, acometido pelos ataques terroristas, pela onda descontrolada de refugiados e pela recuperação lenta demais da estagnação econômica desencadeada pela crise financeira mundial de 2008-2009.

Já do lado dos republicanos, o ex-primeiro-ministro François Fillon, vencedor das primárias da centro-direita em novembro, perdeu a posição de favorito na corrida presidencial por causa de um escândalo de pagamentos irregulares, no valor de 900 mil euros, de seu antigo gabinete no Senado para sua mulher e um casal de filhos. Fillon chegou em terceiro, com 20%, encostado em Le Pen – que, aliás, enfatizou sua imunidade de deputada do Parlamento Europeu para não depor à polícia sobre pagamentos irregulares de seu gabinete a um guarda-costas e a uma assessora.

Assim, é por exclusão dos políticos tradicionais, mais do que por consciência de todas as consequências dessa escolha, que os eleitores buscam o novo. No caso norte-americano, o novo, personificado por Trump, veio acompanhado de uma enorme instabilidade. Embora tenha se candidato pelo Partido Republicano, ele não segue sua cartilha e já sofreu até derrotas no Congresso – como a tentativa de reforma do sistema de saúde –, embora seu partido conte com maioria nas duas Casas.

No dia 1º último, o presidente norte-americano tomou mais uma atitude que assustou o mundo e boa parte dos cidadãos de sua nação: a saída dos EUA do Acordo do Clima de Paris, um tratado firmado em 2015 por 195 países para limitar o aumento da temperatura mundial. Dessa forma, Trump põe fim à promessa de seu antecessor, Barack Obama, que havia se comprometido a reduzir, no prazo de dez anos, em até 28% a emissão de gases que afetam o aquecimento global. Para Trump, o acordo “é desvantajoso para os norte-americanos”.

Vale frisar que os EUA são o país que mais poluiu na história e que tal atitude pode, no pior dos cenários, representar um aumento de 0,3ºC das temperaturas do planeta até o final do século, segundo declarou a Organização Meteorológica Mundial, das Nações Unidas.

Macron, obviamente, não é Trump, que aliás se parece bem mais com Le Pen, e que por sinal a apoiou, enquanto Barack Obama manifestou seu respaldo ao candidato de centro. O ex-socialista, embora tenha sido membro do conselho do banco de investimentos Rothschild, não fala em gerir a França como se gere uma empresa e não rejeita virulentamente as instituições, os partidos e outros dispositivos do establishment político, como faz Trump.

Talvez Macron, aos 39 anos, se aproxime mais de uma troca geracional na política, e seu movimento vá com o tempo assumindo os papéis antes desempenhados pelos partidos. Nesse sentido, a eleição francesa pode ser muito mais uma resposta para as angústias da democracia do que a norte-americana.

Entretanto, talvez nunca a França tenha dependido tanto do êxito de um governo. Isso porque, pela dinâmica estabelecida entre o primeiro e o segundo turno, a FN emerge simbolicamente como a alternativa à proposta de centro do REM. De maneira que, se Macron fracassar, há o risco real de a FN firmar-se como uma opção eleitoralmente viável.

Será, provavelmente, uma FN atualizada, sob a liderança da bela Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha-neta do fundador do partido, Jean-Marie Le Pen, e sobrinha de Marine. Hoje, com apenas 27 anos, eleita deputada pela primeira vez aos 22, mais preparada intelectualmente e contida emocionalmente que sua tia e seu tio-avô, ela desponta como a herdeira do movimento ultranacionalista.

O atalho do populismo continuará rondando a França, e o resto do mundo, como um fantasma. Políticas econômicas sustentáveis requerem tempo para dar resultado. Tudo dependerá da paciência dos franceses. E de um pouco de sorte.