“Eu quero voar, escrever o meu enredo”, canta a baiana Larissa Luz em Descolonizada, música que abre Território conquistado, seu segundo álbum, lançado no ano passado e indicado ao Grammy Latino. Após seis anos como vocalista do Ara Ketu, nos últimos quatro Larissa, que tem 30 anos, decidiu tomar as rédeas da própria carreira – o que tem muita a ver com um processo de autoconhecimento, seja como artista que também produz e compõe, seja enquanto mulher negra. “Quando fui fazer o disco, parei para olhar o que estava vivendo e vi que o empoderamento feminino negro era um ponto, pois eu estava passando por isso desde meu primeiro álbum [MunDança, de 2013], um processo de descoberta das minhas origens e de me gostar do jeito que sou. Porque, ao longo da carreira, passei por muitas restrições, um processo de embranquecimento grande dentro da indústria baiana”, conta.

A questão da noção e do fortalecimento das origens permeia várias fases da vida de Larissa, a começar pela figura materna na infância. Filha de uma professora de literatura, ela cresceu na periferia de Salvador lendo e escrevendo muito. “Minha mãe era uma grande referência: negra e pobre, batalhou para conseguir uma formação na universidade pública e depois para ser respeitada em escolas particulares. Porque a relação é de clientelismo na educação da classe média alta, e quando tem a questão racial a coisa piora.”

Apesar da influência de uma mulher forte, o discurso que alicerça Território conquistado – criado junto com a antropóloga e escritora baiana Goli Guerreiro, com faixas que celebram e trazem para a superfície os pensamentos de diversas criadoras negras – veio em etapas, assim como o debate sobre o assunto também vem se tornando mais presente no Brasil. “Quando você se reconhece enquanto mulher negra e se gosta, sabe quem você é e está pronta para lidar com o sistema, sua vida é uma. Quando você não se reconhece e não se gosta, é um martírio. Queria ser outra coisa quando era criança, sonhava que viria uma fada transformar meu cabelo em loiro e liso, porque não suportava ser referência de algo que não era bonito.”

Foi depois de um relaxamento que fez seu cabelo cair, aos 17 anos, que Larissa começou a questionar como lidava com sua estética. A mãe, que assim como muitas das mulheres da família Luz também alisava o cabelo, acompanhou a filha na transição. “Passei por isso e depois tive de passar por outro processo. Entre os 17 e os 20 anos, estava retomando minhas origens, não aceitando imposições, mas depois, no Ara Ketu, comecei a passar por tudo de novo. Doido, porque era uma banda afro, blocos da periferia, mas os empresários não tinham essa preocupação. É bem complicado todo o contexto da música baiana; se a gente parar para pensar, quem tem de cantora negra de axé?”, questiona.

Até por conta da importância da representatividade em um território negro em essência, Larissa aceitou o desafio ao entrar no Ara Ketu, atuando em um gênero que não era muito a sua praia – anos antes, na adolescência, ela teve uma banda de rock só de meninas e depois participou de um “grupo mais teatral, de música de raiz”, conta.

Depois de seis anos à frente da banda, ao partir para a carreira solo, lançou MunDança, entrando já nas questões do feminismo negro. Mas o tema ganha corpo pleno em Território conquistado, disco que resgata uma face roqueira da cantora, ao mesmo tempo em que dialoga com referências percussivas afro-brasileiras, ritmos baianos e batidas eletrônicas do dubstep e trap. O álbum ganhou eco com a música Bonecas pretas, que trata da representatividade da mulher negra, usando como ponto de partida os brinquedos infantis.

A questão de ocupar os espaços, aliás, é bem resolvida para a artista. Recentemente, ela cantou a faixa em um programa da TV Globo (Amor e Sexo), sendo bastante elogiada – mas também recebendo questionamentos. “Minha música fala sobre ter oportunidade e ser referência para mulheres, então faz muita diferença ter mulheres negras fora do estereótipo de oprimidas, frágeis. E se estou falando sobre isso e recebo um convite para estar ali naquele lugar, por mais que não concorde com os posicionamentos da emissora, eu vou. Não preciso concordar com tudo para poder ocupar aquele espaço e levar uma mensagem que fortalece meu bonde. Não estou ali para fazer média, estou com um objetivo claro”, pontua. “A arte como política tem muitas nuances, é uma labuta, e quando a gente escolhe esse caminho já sabe que vai ser cansativo. Mas também não tenho preguiça.”

Tal disposição para o debate, da forma mais didática possível, fica perceptível também nas mídias sociais. Outro caso recente envolveu a decisão de Larissa de não participar do show de um rapper que havia feito um clipe que ela considerou sexista. Amiga do artista, a cantora explicou aos seus seguidores porque não se sentia bem em fazer parte daquela apresentação, mas também informou que estava aberta para a conversa. “Não tem o bem e o mal na vida. Precisa ter diálogo na militância, do contrário, o propósito se perde. A gente que está querendo transformar começa a cansar e o objetivo não é esse, é se transformar socialmente e continuar convivendo”, diz.

A necessidade do diálogo também se estende dentro dos feminismos. Em um show, a criadora já foi questionada em relação a seu discurso não contemplar mulheres brancas. “Falei que existia um recorte do universo da mulher negra que é diferente da mulher branca, e acho muito importante que as mulheres brancas tenham consciência disso para que possamos dialogar e se ajudar”, afirma.

No álbum atual, ela conta com participação de Elza Soares na faixa-título; de Thalma de Freitas lendo poesia da autora Lívia Natália em Mama chama (em homenagem à mãe de Larissa); e faz referência à obra de Nina Simone, assim como à da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, da brasileira Carolina de Jesus e da norte-americana bell hooks [escrito em minúsculas mesmo]. Já no palco, a cantora homenageia ainda artistas como a jamaicana Sister Nancy. “A gente queria trazer essas mulheres dentro de uma perspectiva de luta e resistência”, explica.

Tendo a dança muito presente em sua apresentação, ela acredita na potência da diversão somada à reflexão social. “Ara Ketu e minha carreira solo dialogam, mas são diferentes. Ali era a música para entreter, para a galera cantar junto fácil, e acho que o entretenimento pode andar junto com conhecimento sim. Acho que a gente pode rebolar e pensar”, garante.

Além da turnê do disco, na qual muitas vezes excursiona com o cantor Russo Passapusso (BaianaSystem), ela toca o projeto O rock é negro, que estreou no último Carnaval com participações de BNegão e Ellen Oléria, buscando reforçar as origens negras do estilo. “Acho que é hora de conquistar nosso território mesmo e tomar o que é nosso. O axé é nosso e o rock também. Uma coisa que ouvi sobre apropriação cultural e achei muito pertinente é que a gente só quer não ser esquecido dentro da nossa própria cultura”, diz ela, que planeja ainda este ano começar a trabalhar em um novo disco. “Agora, estou vindo com tudo em um resgate de mim.”