O que você faz quando comete uma gafe? Pede desculpas? Finge que não percebeu? O que você faz? Calma. O que você faz? Peço desculpas. Mas, se não for possível, demonstro de alguma maneira que percebi o furo; não sei, espero, já resolvi uma pendenga dez anos depois. Ela respira. Minha amiga angustiou-se porque, durante um jantar, o casal anfitrião pediu sua opinião sobre o convite de casamento da filha, e ela disse que tinha gostado mais ou menos, pois, sendo a filha uma artista plástica de vanguarda, esperava algo mais ousado do que um simples cartão bege com letras prateadas. Tive medo de pedir desculpas. Medo? Sim, de ouvir “minha filha, se enxerga, não estou nem aí para o que você pensa”. Caramba, mas que espécie de amigos são esses? Sou amiga dele desde a faculdade, mas tenho pouca ou nenhuma intimidade com a esposa. A verdade é que eles ficaram muito ricos, não posso mais dizer o que penso. Se fossem pobres... Ia perguntar, mas não perguntei. Calma. O convite chegará às suas mãos com um bilhete da noiva: “Querida, obrigada pelo apoio, também detestei o convite, mas noblesse oblige (nobreza obriga)”.

Desligamos o telefone. Estamos em 2017, e a opinião sincera, espontânea, ainda é tabu. De onde vem essa nossa disposição para ficarmos ressentidos com coisas irrelevantes? Convite de casamento é algo simbólico, sagrado. Ela devia ter dito que gostou. Mesmo sem ter gostado? Ela feriu suscetibilidades ou mais do que isso. Não é comum no Brasil você dizer o que pensa. Não é comum, ponto. Em qualquer parte do mundo. Mas fiquemos no Brasil. Não é comum, nem na vida pública, nem na vida privada. É o protocolo. Vem desde o Brasil Colônia. Quem discordaria de um senhor de escravos dentro de sua própria casa? De um coronel, sentado à cabeceira de sua mesa de jantar? A angústia embutida no caso da minha amiga é, a meu ver, justamente o fato de a opinião romper com uma estrutura familiar que, parece, tornou-se autoritária. Se pensarmos bem, a gafe é uma ruptura acidental com as regras da nobreza. E, geralmente, a nobreza, seja ela qual for, prefere não ser contrariada. Machado de Assis, no conto Teoria do medalhão, faz uma crítica genial sobre esse acordo nacional, em que a inteligência deve ser decorativa, e não fonte de opiniões ou aproximações afetivas reais. No conto, o pai preocupado com o futuro do filho lhe diz: “(...) qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável (...) A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros (...), é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem (...) Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão”. O medalhão é justamente aquela pessoa que sabe dar opinião sobre tudo, sem se comprometer com nada. Faz uso de “sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocados jurídicos, máximas, (...) frases feitas, locuções convencionais, fórmulas consagradas”, e sempre se sai bem. Ser medalhão é “pensar o já pensado”, dar gravidade a tudo o que diz, sem nunca “infringir as regras e obrigações capitais”. “Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade”, aconselha o pai. “Guardadas as proporções, a conversa dessa noite vale o Príncipe de Machiavelli.” Vou ligar para a minha amiga. Pedir mil desculpas. Não devia ter feito piada de algo tão sério. Ela está muito, muito longe de ser um medalhão.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E NÃO QUER SABER DE CRÍTICAS SINCERAS A RESPEITO DESTE TEXTO.