A situação de imprevisibilidade que tomou conta do cenário político brasileiro nos últimos meses, piorada mais ainda em maio passado, tem consequências nas mais diversas áreas de atuação. Naturalmente, o que mais se discute são as implicações econômicas que uma crise limite como essa acarreta ao país, já que mexe diretamente com o bolso de cada cidadão. No entanto, a produção artística também sofre com a incapacidade de poder planejar qualquer coisa quando não se sabe ao certo qual será a próxima trama palaciana a estremecer as fundações da república.

Para a socióloga Daniela Ribas Ghezzi, professora do curso de gestão cultural na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a falta de continuidade é um problema comum no Brasil e que se agravou particularmente em 2016. Ela lembra que um dos primeiros atos do governo do atual presidente Michel Temer (PMDB) foi extinguir o Ministério da Cultura e vincular a pasta ao Ministério da Educação. Após a mobilização de artistas em todo o país, o presidente voltou atrás. Segundo Daniela, nos últimos anos, a população foi capaz de perceber, graças a medidas estruturadas como o Plano Nacional de Cultura, a conquista de direitos culturais. No entanto, isso está desaparecendo, porque não existe um mínimo de planejamento com as instituições, todas na corda bamba, inclusive o próprio universo político. “Troca ministro, extingue a Secretaria de Política Cultural, fica tudo pulverizado. Há uma descontinuidade. Você não ouve mais falar em Plano Nacional de Cultura. Não temos princípios norteadores do que é cultura”, avalia.

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Do outro lado da corda estão os artistas, aqueles que tentam produzir em meio ao caos. O JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia é uma organização não governamental que atua desde 2010 no bairro Jardim Canadá, em Nova Lima (MG), como uma plataforma para o aprendizado e o intercâmbio de experiências artísticas. Francisca Caporali, coordenadora artística do projeto, diz que, de certa forma, se preparou para a tempestade. “Nós que trabalhamos com cultura independente nunca vivemos fora da crise. Estamos quase sempre na precariedade. Agora mais do que antes. Mas a gestão parte desse princípio de gerir muito pouco de forma criativa. Há uma obstinação nesses gestores-artistas que faz as coisas acontecerem”, afirma.

Essa obstinação pode ser chamada também de resistência. Uma palavra muito cara ao editor Eduardo Lacerda, à frente da editora independente Patuá, que já abocanhou alguns dos principais prêmios literários do país. Além de publicar livros, ele também conseguiu montar um café-livraria graças a um financiamento coletivo. No entanto, admite que há uma diminuição de quase 40% no número de exemplares de livros vendidos. De acordo com ele, isso pode ocorrer por um medo maior, dos autores, em investir na divulgação do livro (o que sempre exige um pouco de recursos financeiros para a compra de exemplares, distribuição, divulgação). “Acho que as pessoas, por um lado, estão com muito medo e, por outro, realmente estamos enfrentando uma crise financeira e a cultura é, com certeza, a primeira área mais afetada. A instabilidade também causa muito medo nos produtores culturais, que acabam investindo menos, por consequência acabam tendo menos retorno. Penso que boa parte da crise se deve ao medo. Não invisto, não tenho retorno, penso que a falta de retorno é culpa de uma crise, mas ela é culpa do medo, da falta de investimento”, diz.

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Silvia Góes, do Coletivo Lugar Comum, do Recife, que reúne artistas de diferentes linguagens (dança, teatro, música, artes visuais, literatura), afirma que a situação atual “afeta não só a feitura da obra em si, pela distribuição do tempo à artesania do que se vai apresentar, como também os recursos escolhidos para se comunicar com o público”. Segundo ela, tudo na montagem de uma obra tem custo, é uma cadeia de produção que pode envolver inclusive muitos prestadores de serviços de origens diversas: luz, figurino, produção, elementos cênicos, etc. “Além disso, todos os meses, sem falta, recebemos nossas contas pessoais de água, luz, pagamos o aluguel, o condomínio, a mensalidade da escola das crianças, o celular”, enumera.

Nesse sistema de imprevisibilidade e de dependência econômica, há que se ressaltar que a produção de arte possui características muito particulares e não se regula pelo mercado. Arte pode também ser um produto, mas ela não nasce com a intenção de vender de forma massificada, como um tênis ou um carro. Nesse contexto, ela é ainda mais afetada em uma crise generalizada como a que vivemos. Além disso, a atriz Camila Mota, vice-presidente da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona – que estreia no fim deste mês o espetáculo Macumba antropófaga –, chama a atenção para uma “caça às bruxas” ocorrendo contra os artistas. “A polarização dessa crise política fomenta um clima em que os artistas são chamados de vagabundos, de mamadores das tetas da Lei Rouanet e todos esses clichês repetidos pela intolerância. A cultura e a arte são espaços de contradição, elas permitem a contracenação de diferenças, e quando existe um movimento, com uma dimensão mundial, de aniquilamento de diferenças, a produção de cultura é necessariamente afetada”, opina.

Justamente a Lei Rouanet é frequentemente alvo de polêmicas por seu mau uso e, em consequência, há quem defenda a interrupção de incentivos públicos no universo artístico. No entanto, segundo Daniela, “nenhum setor vive sem dinheiro público”. O problema são as distorções da lei. “Olhe o esporte, o agronegócio, quanto o Estado investe. A questão é que a iniciativa privada usa projetos artísticos para fins de marketing da empresa com dinheiro público. Muitas vezes, a iniciativa privada decide o que é cultura. Existe um projeto de lei em tramitação há dez anos, chamado Pró-Cultura, que visa corrigir essas distorções, mas não vai para a frente devido ao lobby das empresas”, explica a professora.

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O ator Walter Lins, um dos fundadores da Encena Cia de Teatro, acredita que a imprevisibilidade da situação política e econômica do país afeta a produção, ao passo que atinge a todos nós pessoalmente. “Fica impossível que as pessoas, o público, voltem sua atenção para a cultura e menos ainda para o teatro quando estão preocupadas com seu futuro financeiro, seus trabalhos, sua sobrevivência. E a cultura, principalmente a resistente cultura periférica, nunca foi foco dos governos. Na atual conjuntura, menos ainda e, infelizmente, o horizonte não aponta para nada diferente ou melhor de como tem sido nos últimos anos”, afirma.

Nelson Pacheco, coordenador do Coletivo Cultural Macaco Chinês, do Rio de Janeiro, produtor cultural e promotor de eventos da Fundação de Apoio à Escola Técnica, Ciência, Tecnologia, Esporte, Lazer, Cultura e Políticas Sociais (Fundec), defende que, diante das dificuldades, o voluntariado é uma alternativa, pelo menos emergencial. “Enquanto não retornamos aos investimentos públicos de cunho social na viabilização de acesso livre das populações às atividades culturais e artísticas, uma saída é a criação de coletivos, nos quais todos os aspectos que envolvam a produção e a realização de cultura, artes e entretenimento estejam distribuídos em um grupo de voluntários, atuando em praças, ruas, parques e espaços públicos livres, unindo artistas, equipe de realizações, comunidade e pequenos empresários locais”, explica.

Para todos os agentes envolvidos no processo artístico, resistir é uma ordem. Rodrigo Araújo, do coletivo paulista Bijari, um centro de criação de artes visuais, lembra que a crise pode ser útil para tirar os artistas da zona de conforto. “Se, por um lado, ao diminuírem os recursos, temos uma menor produção institucionalizada, por outro, aumentam-se os horizontes e parâmetros para fora desse território já demarcado. A crise é uma ferramenta que faz brotar novas urgências criativas e matérias-primas a partir da escassez de recursos. A questão apresentada nesse cenário é como atualizar o fantasma da precariedade do trabalho artístico e fazer dela um instrumento de liberdade, e não de submissão. Sair dessa dicotomia é uma grande oportunidade desses tempos de instabilidade”, diz.

É um pouco na linha do que pensa a professora Daniela. “Minha experiência me mostra que atividade cultural sempre haverá, com financiamento ou sem, com ou sem crise. O que essa situação cria é uma instabilidade, que, por sua vez, gera incerteza. Para alguns, isso é um impeditivo, mas não considero que essa seja uma visão abrangente sobre o tema. O mercado cultural se refaz a cada nova crise, é uma área acostumada a lidar com escassez de forma criativa”, afirma. Já Eduardo Lacerda profetiza: “Não é culpa das pessoas. A falta de interesse artístico e literário é um projeto político de muitos séculos. Ao mesmo tempo, vemos todos os dias novos artistas aparecendo, novas editoras, novos grupos de teatro, novos músicos, novos saraus nas periferias de grandes cidades. A arte é uma potência que está latente, uma hora isso explode”. Que assim seja.