Vincent Carelli solta uma risada doce, exibe os dentes levemente separados, e diz que Martírio, documentário que estreia este mês sobre o genocídio dos guarani-kaiowá no processo de retomada de terras, foi o filme de sua morte. O comentário, a julgar pelo sorriso no rosto do cineasta e indigenista francês, soa hiperbólico, mas é, na verdade, quase literal. Logo após finalizar as gravações, Carelli teve uma inflamação que acabou levando ao rompimento de seu intestino. Durante um ano, até que os médicos conseguissem reparar o órgão, foi para a UTI duas vezes e passou por cinco cirurgias. “Só pensava que não podia morrer antes de acabar o filme”, conta o documentarista, rindo mais uma vez, como se a doença que o acometeu não passasse de uma brincadeira.

O bom-humor para além de todas as tragédias é, segundo ele, herança das tribos. Foi com os índios que aprendeu a relativizar os problemas. Quando fez Corumbiara, por exemplo, filme que reúne, ao longo de 20 anos, evidências que comprovam o massacre na Gleba Corumbiara, em Rondônia, Carelli reencontrou alguns sobreviventes e filmou um índio kanoê tranquilo, retomando com serenidade o episódio que dizimou mais da metade de sua tribo.


O início desse aprendizado com os indígenas, no entanto, aconteceu muito antes. Começou aos 16 anos, quando o cineasta, hoje com 60, conheceu os índios xikrin, que viviam isolados no sul do Pará. As primeiras visitas, acompanhadas de um missionário dominicano, funcionário do colégio onde estudava, acabaram resultando em uma viagem sem volta: ele abandonou o primeiro ano da faculdade de ciências sociais na Universidade de São Paulo para viver dois anos ao lado da etnia.

Na aldeia, foi logo “adotado” por um pai indígena, passou a fazer parte de um sistema de vida coletivo e a dormir dentro de uma habitação feita de palha, reservada aos homens daquela tribo. Isso, claro, nos dias em que não saía para acompanhar caçadas que duravam até 15 dias mata adentro, ocasiões em que o conforto da rede era substituído por um amontoado de palhas no chão. “Era um menino magro e frágil comparado aos outros jovens dali”, lembra Carelli, que fazia, também, as vezes de enfermeiro, utilizando os saberes acumulados nas visitas como ajudante do frei dominicano.

Cuidando de epidemias de gripe, malária e outras enfermidades, ele amargou a morte de sua irmã, filha do primeiro casamento do homem que o adotou como filho. A menina, de 12 anos, teve uma infecção que foi tratada com benzetacil, mas ela voltou, desencadeando depois uma meningite. “Ela acabou morrendo no hospital da Aeronáutica, pois a socorremos muito tarde. Eu não era uma pessoa capacitada e nem tinha os antibióticos necessários”, diz. “Era um contexto duro, muito difícil, mas continua até hoje o mesmo.”

Diante dessa realidade, o documentarista entendeu que poderia desempenhar um papel mais significativo na cobrança pela presença do Estado e por uma maior assistência para os povos indígenas e, por isso, decidiu fazer, em 1973, o curso de indigenista da Funai. Deixou a aldeia, inclusive, em uma situação delicada: os índios haviam abortado o ritual para o qual vinham se preparando durante meses, uma festa de nominação masculina, por conta de uma epidemia de gripe que acometeu a todos.
O curioso foi que, mais de dez anos depois, quando o cineasta retomou o convívio com os xikrin, os encontrou realizando o ritual que naquela época tinha perdido. Encontrou também o menino Vicente, cujo nome foi dado em sua homenagem, que correu para abraçá-lo, dizendo que, embora tivesse nascido após sua partida, sentia saudades e havia aguardado ansiosamente pelo momento de conhecê-lo. “É uma relação familiar, a gente muda a vida deles e eles mudam a vida da gente. Os xikrin adoram dizer para os outros grupos indígenas que cheguei lá menino e foram eles que me criaram”, conta.

E os outros grupos não são poucos. Depois da experiência na Funai, Carelli passou dez anos se dedicando à construção de uma enciclopédia com dados e imagens dos índios, e também fundou, em 1979, o Centro de Trabalho Indigenista, com o objetivo de apoiar projetos voltados às etnias indígenas. Durante todo esse tempo, teve contato com os povos asurini, kanôe, nambiquara, guarani-kaiowá, entre muitos outros. “Cada lugar que trabalhei é um universo diferente. Sair do convívio com os xikrin, guerreiros, e conhecer os asurini, que eram rezadores, por exemplo, foi como se eu tivesse me mudado daqui para a Ásia”, diz.



ESPÍRITO DE AVENTURA
Quando tinha por volta de 9 anos de idade, Carelli ganhou do padrinho uma imagem que permaneceu por muito tempo decorando a escrivaninha na qual realizava as tarefas da escola: era a fotografia de um xavante nu segurando seu arco e flecha. O retrato, que poderia ser encarado como um presente banal, aguçou a imaginação do menino, que via na imagem do índio a possibilidade de conhecer outros mundos. “Me provocava uma ânsia de liberdade, um espírito de aventura mesmo. Viajei muito nessa imagem e, quando tive a oportunidade, fui para uma aldeia”, lembra o cineasta. “Assim que cheguei à terra dos xikrin, foi como se estivesse desvendando o mistério da história da humanidade. Foi da mesma dimensão do nascimento do primeiro filho, que é a experiência humana mais emocionante.”

Ali, ele deparou com uma realidade completamente diferente da que estava acostumado: viu-se diante de uma sociedade igualitária, que vivia entre cantos e cerimoniais, e passou a se sentir um privilegiado por testemunhar tudo aquilo. Foi nesse momento que resolveu utilizar a imagem como forma de registro histórico: era o embrião do Vídeo nas Aldeias, projeto criado em 1987 dentro do Centro de Trabalho Indigenista, que inicialmente tinha como objetivo mostrar aos índios sua própria imagem.

A primeira experiência nesse sentido aconteceu com os nambiquara, filmados durante um ritual de iniciação feminina. Quando viram os registros, eles se decepcionaram com o excesso de roupas que vestiam e pediram para refazer as filmagens – sua reação está registrada no documentário A festa da moça, de 1987.

Aos poucos, o Vídeo nas Aldeias evoluiu do simples documento para o processo de formação de diretores indígenas a partir de oficinas. Ao disponibilizar aos grupos étnicos esse conhecimento, Carelli imaginava que os tornaria aptos a utilizar o vídeo como uma ferramenta de denúncia, mas descobriu durante esse percurso que a afirmação identitária era o tema central. Em vez de explorar os conflitos e os problemas circunstanciais, os índios queriam documentar o que tinham de mais valioso. “Eles viram a possibilidade de gerar imagens como forma de mostrar as coisas mais belas”, explica o documentarista. “O Vídeo nas Aldeias não foi um projeto para contar histórias de denúncia, mas para divulgar as experiências da forma como as tribos queriam”, explica.


FILMES-DENÚNCIA
Martírio, o documentário que estreia este mês e quase não foi finalizado pelo estado de saúde de Carelli, no entanto, está dentro de uma leva de filmes que não pôde seguir essa métrica. O longa aborda a situação dos guarani-kaiowá desde o confronto com os jesuítas, no século 18, para explicar o conflito atual entre os produtores rurais e os indígenas. “São duas visões diametralmente opostas do mundo. É o capital contra um povo que se considera eleito de Deus para cuidar da natureza”, diz o cineasta. Ele decidiu iniciar as filmagens quando o cacique Nísio Gomes foi assassinado, em 2011, logo após a retomada das terras no município de Aral Moreira, em Mato Grosso do Sul. “Tinha obrigação de fazer esse filme para que pudesse me olhar no espelho de manhã”, conclui.

Martírio integra uma trilogia que começou com Corumbiara, documentário sobre o massacre em Rondônia, e será finalizada com Adeus, capitão. Em fase de produção, o próximo projeto irá explorar os gaviões, grupo que conseguiu autonomia com a produção de castanhas e depois teve seu território devastado por projetos como a Ferrovia de Carajás e a Hidrelétrica Tucuruí. “É uma reflexão sobre a complexidade do capitalismo e seu impacto dentro de uma sociedade igualitária”, conta Carelli.

Enquanto Adeus, capitão não começa, o documentarista planeja o momento em que realizará uma exibição de Martírio nos acampamentos indígenas de Mato Grosso do Sul e termina também de organizar a transferência para sua casa de todos os arquivos do Vídeo nas Aldeias, que desfez sua sede quando deixou de receber o apoio financeiro da embaixada da Noruega no Brasil. Além disso, o ambiente doméstico passa agora a funcionar também como a produtora Papo Amarelo, empresa que o cineasta precisou criar para conseguir captar recursos no Fundo Setorial Audiovisual, da Ancine, já que o repasse não é permitido para ONGs. Todo esse trabalho burocrático, segundo Carelli, só é possível intercalando temporadas entre Olinda, a cidade onde vive, e todas as tribos que visita. “Eu me energizo no tempo em que passo com os índios. Só consigo equilíbrio se intercalo uma temporada aqui com outra lá”, diz.

Ultimamente, no entanto, a partida das aldeias passou a vir acompanhada do pranto. Quando finalizou Martírio, ao deixar a tribo para trás, Carelli diz que não conseguiu conter a emoção, parou o carro e chorou compulsivamente lembrando da alegria e da beleza dos mantras contra o ódio e a violência que cercam os indígenas. O sentimento, a partir de então, o segue em todas as despedidas. “Minha relação com eles ganhou uma nova intensidade quando fiz Martírio e entendi quanto são importantes para mim”, diz. “Fico tentando me conter ou então chorar escondido”, ele confessa, antes de soltar mais uma de suas doces risadas, o bom-humor que aprendeu a ter no convívio com os índios.