O sal é um dom é o título do livro que reúne receitas de Dona Canô (1907-2012), a mãe de Caetano Veloso e de Maria Bethânia. O volume foi lançado há dez anos e a expressão se refere ao fato de o ingrediente ser um dom da boa mão na culinária. Mas também ao fato de ter sido considerado “tempero divino” na Grécia Antiga – que compreende o período entre 1.100 a.C. e 146 a.C. –, pois, além de condimentar, era usado como conservante para carnes e pescados.

Com vasta historiografia distribuída em centenas de livros, o sal foi extraído inicialmente de rochas; depois, passou-se a extraí-lo da evaporação da água marinha, conforme conta Mark Kurlansky, autor do livro Salt – A World History (Penguin, ainda sem tradução para o português). E sua apreciação é comprovada desde o início da história. Ao lamber certas rochas, o homem primitivo percebeu que o ingrediente estimulava os sensores da língua capazes de detectar os sabores dos alimentos. Depois, comprovou-se que alimentos rodeados dessa substância se conservavam por mais tempo.

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NA EUROPA
Extrações das minas de Hallein, que significa “salina”, foram localizadas nas imediações de Salzburgo (cujo significado é “cidade do sal”), na Áustria. Cidades britânicas com a terminação atual “wich” significam, no idioma anglo-saxão, “lugar onde se faz o sal”.

No Império Romano, entre 27 a.C. e 476 d.C., esse insumo foi comercializado através do continente e do Mediterrâneo. Era costume pôr sal em pratos que possuíam variedades de verduras. Assim, amenizava-se a acidez de certas folhas, dando origem à palavra “salada”. Os romanos teriam aprendido com os celtas, do norte da Europa, a fazer a salga de cortes do porco.

No mesmo período, as rotas do sal passaram a transportar o produto dos centros de produção aos pequenos vilarejos, representando grande importância econômica até meados do século 19. Na Idade Média, por exemplo, ficaram conhecidas a Route du Sel, na França; a Via Salária, em Roma; e as Salinas de Léniz, na Espanha. Nessa época, começou-se a atribuir simbolismos ao produto, como a fertilidade, e dele também foi criada a palavra “salário” (pagamento de trabalhos feito com sal em pequenas pedras brancas).

NO ORIENTE
Na Ásia, o sal foi documentado nos anos 2000 a.C., na região central da China, onde foram encontrados restos dele em cerâmicas enterradas. Os chineses, povos mestres em gastronomia, fermentavam alimentos em sal e os usavam em molhos e sopas, algo que se tornou característico da cozinha do Oriente, ou seja, o shoyo e o jiangyou, elaborados com grãos de soja fermentados. Durante a Dinastia Xia, em 800 a.C., o país criou sistemas elaborados de extração, com o uso de maquinário hidráulico. Litros de água do mar eram colocados em cerâmicas sobre o fogo, até a água evaporar, obtendo-se assim cristais salinos.

A fermentação da soja começou a ser feita mais ou menos em 700 a.C. por monges budistas, que ainda conservavam peixes, verduras e ovos de 100 anos, em Zigong, considerada a cidade do sal. São dessa época os impostos pagos em sal e que teriam financiado parte da construção da Grande Muralha chinesa.

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Na cozinha japonesa, o sal – denominado shio – passou a ser combinado com o glutamato monossódico, extraído das algas. Como o país é muito úmido, a evaporação da água marinha se fazia com fogo. Carlos Ribeiro, chef, estudioso e professor de gastronomia, autor do livro Culinária japonesa para brasileiros, diz que nada é mais importante na cozinha, ocidental e oriental, do que o produto. “Mas não dá para extrapolar. É preciso pensar em outros ingredientes do prato. Todos devem ter seu sabor presente.”

Ainda na Ásia, outro destaque é a Índia, que possui depósitos de sal de rocha no Panyab, além de também usar o sal negro. O estado de Orissa, por exemplo, é famoso desde que os ingleses chegaram ao país, convertendo a produção em monopólio britânico, o que perdurou até a década de 1930, quando Gandhi criou o protesto conhecido por Marcha do Sal, pedindo o fim de impostos colonialistas.

NA ÁFRICA
No Egito, há múmias conservadas em salinas nos desertos. Algumas datam de 3000 a.C.. Mas, além de ritos funerários, o sal também era apreciado na mesa dos faraós. Diz a história que um molho denominado oxalme e usado como tempero provinha de uma mistura de sal e vinagre. Havia ainda uma bebida chamada de shedeh, feita à base de sal e ervas fermentadas.

As primeiras salgas de carne da história teriam acontecido no Egito, quando se passou a conservar os peixes do Rio Nilo dessa forma, além de azeitonas. Nos dias de hoje, algumas rotas de transporte de sal mantêm-se em funcionamento ao longo do Nilo e do Saara, onde é possível ver tuaregues transportando o produto no lombo de camelos.

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NAS AMÉRICAS
Em 1540, o conquistador espanhol Hernando Soto, em viagem pelo Mississippi, observou e anotou em carta ao reino espanhol a respeito de tribos que colhiam sal ao longo dos rios. Os ingleses, na América do Norte, começaram a pesca do bacalhau, aumentando a demanda do produto. No século 17, holandeses, ingleses e franceses disputavam o mercado de sal na América do Norte e Central.

Astecas e incas também foram produtores de sal. Tribos da atual região de Bogotá ficaram conhecidas por sua eficiência em obter o produto por meio de evaporação. O continente ainda tem extração famosa no deserto de Atacama e na região de Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde estão algumas das salinas mais importantes do mundo hoje em dia.

DURANTE PERÍODOS HISTÓRICOS
Os locais mais importantes da Idade Média para se comercializar o sal foram os mercados de Gênova e o de Veneza, que competiam em matéria de fluxo. A rivalidade deu origem à Guerra de Chioggia (1378-1381), que concedeu hegemonia a Veneza no mercado salino.

Já no Renascimento, ficaram famosas as minas do Lago Atanasovsko, no Mar Negro. Escultores como Benvenuto Cellini (1500-1571) passaram não só a fazer esculturas de sal como a criar saleiros talhados em ouro.

No século 17, na Inglaterra começou-se a consumir molhos escuros para condimento dos alimentos, surgindo daí os populares molhos ingleses de hoje. O americano ketchup foi criado misturando-se tomate ao molho inglês. No continente europeu, químicos passaram a desenvolver o sal altamente refinado, como o que consumimos hoje. Mas a revolução industrial legou novos processos e ideias a respeito da conservação dos alimentos, com a criação de câmaras frias artificiais. Na década de 1920, passou-se a vender produtos alimentares congelados, tendência que aumentou com o passar das décadas. Isso fez com que a demanda por sal baixasse e que o produto deixasse de ser um bem econômico.

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NO SÉCULO 20
No século passado, começaram os estudos sobre normas dietéticas, recomendando a quantidade diária de mais ou menos 6 gramas de sal por pessoa ao dia. E empresas lançaram no mercado sais coloridos ou misturados a especiarias, para criar ondas de desejo no povo, caso do sal vermelho do Havaí e do rosa do Himalaia, produtos que se tornaram muito apreciados na alta gastronomia.

A FLOR DE SAL
Um dos sais mais caros e apreciados hoje é a flor de sal. Em seu livro Ducasse de A a Z – Um dicionário amoroso da gastronomia francesa (Ediouro), o chef Alain Ducasse diz que a película fina como uma unha retirada a cada nascer do sol das salinas do oeste francês, por homens empunhando pás, chamados de “jardineiros do mar”, são as melhores para se temperar pratos. “São cristalinas, puras, reluzentes e beneficiam o sabor de cada ingrediente disposto no prato”, diz o chef.

Antes, as salinas francesas eram as mais famosas na comercialização da flor de sal. Hoje, a empresa Cimsal, do Rio Grande do Norte, chega a exportar o produto para a França. Embaixador da flor de sal brasileira em São Paulo, o chef Carlos Ribeiro destaca que o produto nacional tem ótimo custo-benefício. “É um ingrediente saudável, um sal para a finalização de um prato. Ele serve para dar o último toque.”

“Para começar a extrair o produto, viajamos diversas vezes à França para entender sua mecânica”, diz Roberto de Freitas, diretor comercial da marca. A chef consultora Edir Nascimento também não abre mão de cozinhar com flor de sal. “É um ingrediente delicado, saboroso. Uma verdadeira joia da gastronomia. Não só a flor de sal, mas o sal em geral é indispensável. Até mesmo bolos, tortas doces, barras de chocolate e caramelos precisam dele. Uma pitadinha faz com que sabores e aromas doces sejam realçados e se tornem mais marcantes.”