Saia, calça, maiô, bermuda, salto, sapato, homem, cintura, silhueta, cabelo, eu, tu, eles, elas, elxs. Se a moda é moda, ela vai abarcar todos os substantivos e pronomes acima e mais um pouco. Óbvio? Nem para todo mundo. Já parou para pensar no quanto as pessoas podem dizer sobre você apenas em uma rápida olhadela na sua roupa? Já tentou decifrar algum indivíduo apenas pelo seu modo de vestir? E a moda? Você seria capaz de decifrá-la no corpo de alguém em quem você esbarrou no transporte público hoje?

Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, moda é: “O uso passageiro que rege, de acordo com o gosto do momento, a maneira de viver, de vestir etc; o modo de vestir; modo, costume, vontade”. Se seguirmos essa definição, provavelmente conseguiríamos apontar algumas tendências do universo fashion que nos regem por agora. Uns diriam algumas cores da estação, outros citariam os cortes e costuras do momento, e nós, com certeza, comentaríamos sobre gênero. Sim, para quem ainda não entendeu, estamos falando sobre a moda agender, genderless ou gender-bender.

A moda agender rompe com as designações do que é feminino e masculino, focando na não binaridade de gênero para suas criações. No intuito de desconstruir padrões rígidos estabelecidos tanto para homens quanto para mulheres, o movimento traz em suas roupas e acessórios um novo olhar acerca da forma como expressamos nossa identidade de gênero na sociedade. “Agender é a moda agênero, ou seja, sem definição de masculino ou feminino, uma moda que serve para todos, independentemente do sexo. Uma evolução do que se chamou unissex ou andrógino”, explica a jornalista especializada em moda Lilian Pacce.

Apesar de um grande panorama histórico que levou a moda agender a existir, seu auge aconteceu em 2015, quando Alessandro Michele assumiu a linha criativa da Gucci e apresentou na temporada de inverno da Europa uma coleção misturando as modelagens e silhuetas até o público não conseguir identificar o gênero de cada um dos modelos que entrasse na passarela. A partir daí, o universo da moda abriu espaço total para que essa desconstrução de padrão tomasse os holofotes das passarelas e da mídia. Mas de onde nasceu essa tendência?


Nos anos que antecederam o período vitoriano, antes de a burguesia encontrar sua ascensão, as definições de gênero eram um pouco mais embaralhadas do que as que temos hoje. Claro que a moda também refletia essa falta de barreiras entre gêneros, o que levava homens e mulheres a utilizar roupas sem grandes diferenciações entre si, ou até mesmo vestimentas e acessórios que hoje são designados a apenas um gênero específico. No período aristocrático, muito do que se vestia e utilizava se aproximava do que chamamos atualmente de androginia. Homens e mulheres vestiam salto, renda, maquiagem e peruca, conforme explica Brunno Almeida Maia, estudioso de moda, com trabalho voltado para a relação entre moda, filosofia e literatura: “Não se podia definir qual era a identidade de gênero de um caminhante que se aproximava a certa distância no campo, pois as roupas, por mais que estivessem generificadas em suas formas, como nos mostrou Kathia Castilho [doutora em comunicação e semiótica], ainda transitavam entre a teatralidade e a performance em um diálogo ‘hesitante’ entre o ‘masculino’ e o ‘feminino’”. Indo ainda mais para trás no tempo, podemos analisar as vestimentas utilizadas pelos povos que viviam nas Américas antes da colonização europeia ou até mesmo das civilizações do Oriente.

“Nos povos que habitavam Machu Picchu, existiam vários gêneros, tendo um artigo designado para cada um, ou seja, era uma diversidade que já existia na língua falada, inclusive. Mas aí chegaram os europeus cristãos e impuseram sua cultura focada no patriarcado. Mesmo no Brasil, nós usávamos uma vestimenta muito diferente e com menos significados de gênero quando os europeus chegaram por aqui e impuseram a cultura deles”, revela Vicente Perrotta, estilista independente com trabalho focado na moda agender.

O grande marco na forma como nos vestimos e como nos relacionamos com o feminino e masculino na contemporaneidade aconteceu na Revolução Francesa, quando a burguesia encontrou seu caminho para o centro da história ocidental. Naquela época, homens vestiam-se de acordo com a praticidade exigida para suas profissões e as mulheres ficaram mais limitadas pelos grandes vestidos, rendas, babados, espartilhos, ostentando, assim, a riqueza de suas famílias. “É nesse período que a roupa masculina burguesa será definida como uma espécie de uniforme de trabalho, e, de certo modo, ainda somos herdeiros de suas formas. A roupa feminina mantém certa estrutura e forma ao longo do século 19, com pequenas modificações, mas que alteraram toda a relação do corpo feminino com a sociedade”, acrescenta Brunno Almeida.

Não à toa, as primeiras grandes transformações que ocorreram no universo da moda e do comportamento em relação aos corpos feminino e masculino partiram da mudança na maneira de as mulheres se vestirem e se colocarem na sociedade. No final do século 19, as sufragistas passaram a vestir calças, o que até então era exclusividade masculina. A partir daí a sociedade entrou em constante revolução de gênero e a moda passou a ser uma das grandes ferramentas para a expressão dessa nova identidade e ideologia que estavam sendo criadas.

“[O estilista] Paul Poiret (1879-1944) pode ser considerado como a primeira revolução no guarda-roupa feminino. Ao orientalizar o vestuário de sua maison e abandonar o uso do espartilho, ele redefiniu as formas do corpo dadas pela história da indumentária anterior, permitindo maior liberdade de movimento às mulheres. Coco Chanel (1883-1971), em sua sequência, introduziu a noção de estilo, que significa praticidade, conforto e independência no vestir”, destaca Brunno, que continua: “Ao se apropriar de peças esportivas do vestuário masculino, Chanel não apenas confundiu as fronteiras entre aquilo que era para a ‘mulher’ e o que era para o ‘homem’ como permitiu que a mulher adentrasse, cada vez mais, o espaço público reivindicando sua independência. Yves Saint Laurent (1936-2008), por seu turno, já na década de 1970, causou furor com sua coleção Libertação e com os famosos smokings femininos. Em uma Paris pós-maio de 1968, ainda era proibido às mulheres o uso de calças em espaços sociais e públicos”.

Já nos anos 1980 e 1990, com o conhecimento da teoria queer, a partir do livro Gender Trouble, de Judith Butler, a sociedade começou a encarar as outras possibilidades além da binaridade de gênero. Nesse momento, a androginia entrou no foco das discussões e passou a ser o caminho para muitos daqueles que não se identificavam, exclusivamente, nem com o feminino nem com o masculino. A partir daí, abriu-se espaço para os questionamentos de gênero e para a libertação do corpo tomar as formas que mais se relacionam com a individualidade daquele que o carrega.


VOLTANDO AO HOJE
A partir do fim do século 19, tornou-se quase impossível dissociar a revolução de costumes da moda. Hoje, quando os questionamentos acerca dos padrões da sociedade patriarcal estão cada vez mais pungentes, a moda agender é um dos maiores gritos que a sociedade produz em relação à liberdade de ser o que se é. “Vivemos em uma época em que aceitar as diferenças – ou lutar pela igualdade – é impositivo. A moda reflete isso. Anos atrás, passamos pela ‘conquista’ do direito de usar um terno pela mulher. O agênero de agora tem mais a ver com a ‘conquista’ do direito do homem ao uso de uma saia ou um laço. São convenções da cultura ocidental que estão sendo questionadas”, comenta Lilian Pacce.

Por ser algo que podemos considerar recente, tanto a luta pela liberdade de gêneros como a moda agender ainda têm um longo caminho a ser trilhado até que, de fato, alguns padrões sejam quebrados. No entanto, já se questiona qual é o papel dessa moda em nossa sociedade atual. “A moda agender, por ser muito recente, ainda não respondeu de ‘qual lado está’. Por isso insisto na problemática: estamos reinventando as formas do corpo, anulando os gêneros, ou trata-se de um crossover de todos os gêneros na mesma peça? Se o caminho for o primeiro, temos uma tarefa hercúlea, uma vez que as roupas já estão generificadas; no entanto, se formos à segunda direção, trata-se de perguntar: quais gêneros, eles também construídos cultural e socialmente, estão sendo revisitados na composição de determinado vestuário?,” questiona Brunno Almeida.

Sentindo que esse novo movimento da moda veio para ficar e para ressignificar nosso olhar acerca do outro e de nós mesmos, o estilista Vicente Perrotta tece sua crítica ao que hoje está sendo produzido pela indústria da moda: “Tenho percebido que alguns estilistas estão tentando trabalhar um terceiro gênero e não é isso. É preciso trabalhar os mais diversos gêneros. Então, não é focar nisso e muito menos na neutralidade, porque vejo muita roupa branca, preta e cinza. Às vezes penso até que é uma maneira de invisibilizar mais ainda, acaba sendo uma roupa sem vida. Acabam achando que é uma questão de androginia. A questão é destruir o binarismo e começar a partir de um novo olhar”.

Sendo ainda uma ponta do iceberg a respeito da liberdade, a moda vem ganhando força como uma das principais armas contra o preconceito e a intolerância. Apesar do muito a ser construído, a moda agender tem seu grande mérito ao levar a informação e o conhecimento para os indivíduos e, acima de tudo, ao nos oferecer uma fonte de libertação das mais variadas opressões sociais, de gênero e de comportamento. Ela é uma janela aberta para o que podemos construir para nós mesmos no futuro. Como diz Brunno Almeida, “a verdade do mundo é que ele é criado a cada instante”.