Para você que, em tempos de carne com papelão, anda com estômago para lá de embrulhado, vamos tentar imaginar o que podemos fazer para que essa longa onda de desânimo e decepção que atravessamos no país tenha, em algum momento, começo, meio e fim. Escândalo após escândalo, ficamos com a sensação de que, no Brasil do vale-tudo, só quem não compartilha dessas práticas e políticas somos nós mesmos. Mas será que realmente queremos mudar? Como é que cada um de nós pode fazer alguma diferença?

Carne Fraca, Lava Jato, Mensalão, Zelotes, operação após operação, chegamos à conclusão de que a corrupção, prática comum na história do país, assumiu um caráter quase endêmico, ou seja, uma “praga” que ocorre habitualmente e com incidência significativa em uma dada população. E, na esteira dessa crise moral que vivemos, quase tudo parece justificável. Violências, intolerância e injustiças de diversas naturezas assumiram cadeira cativa em nosso cotidiano. O grande risco, a meu ver, é acontecer uma naturalização definitiva dessa percepção. Explico!

Recentemente li Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, da filósofa e teórica política alemã Hannah Arendt (1906-1975). No livro, a partir do julgamento que ela acompanhou, em 1961, do oficial nazista responsável pela logística do genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, a autora disseca o comportamento de parte do mundo que assistia impassível à barbárie.

Arendt mostra que, em uma situação em que a violência grassa por toda parte, em um regime totalitário, há uma espécie de banalização do mal, uma relativização ética de seu impacto, uma crença de que ele é inerente ao ser humano. Para ela, os nazistas só conseguiram exterminar inocentes da forma que o fizeram porque, de alguma maneira, tinham o “consentimento” e o conformismo de grande parte da população.

Mas, ao mesmo tempo que a natureza humana pode ser desoladora, Arendt não fecha a possibilidade da existência de pessoas que, agindo contra o “sistema”, buscando brechas para fugir do mal e das atrocidades, oferecem possibilidades concretas de luta. Seriam ações individuais que poderiam trazer esperança para nossa civilização.

É nesse sentido, pegando carona com a filósofa, que fico aqui imaginando que naturalizar a aceitação da cultura de corrupção do Estado como justificativa para uma sociedade estruturada na busca de vantagens, favorecimentos e privilégios não é o único caminho possível. Pelo contrário, esse deveria ser o descaminho, o rumo a ser evitado.

Mas como inverter essa direção? Como achar uma saída, quando parece que todos os atalhos levam a um mesmo lugar? A meu ver, a alternativa não parece ser uma defesa quase histérica da garantia de benefícios e visões pessoais. O que tenho visto por aí, nas filas de restaurantes e aeroportos, no dia a dia de trabalho e lazer, é basicamente uma porção de gente gritando, brigando, destratando o outro. Como reação à decepção com a política e com a ética precária de quem manda, fomos para o outro extremo, para a destruição de tudo aquilo que vem do outro. Perdemos a capacidade de ouvir, de dialogar, de discordar sem atacar. Saltamos da imobilidade e da passividade para o pescoço de quem pensa ou sente diferente de nós. Não me parece ser essa a melhor solução!

Acredito que a construção de uma alternativa passa, sim, pelo nosso reposicionamento frente à cultura dominante de corrupção e de privilégios. Mas essa indignação tem de ser propositiva, não vazia, não oca. Ela tem de desenhar uma colaboração, um projeto comum (mesmo em meio a posturas e visões pessoais antagônicas). A negação tem de ser da ética precária, da corrupção, não do outro. O outro pode pensar diferente de mim, mas isso não nos impede de ter um objetivo maior, que é viver em um país melhor, em que todos possamos acreditar.

Aproveito esta última coluna para me despedir de vocês, leitores da Revista da Cultura. Foi um enorme prazer e uma oportunidade única ter tido este espaço nos últimos anos para pensar em nós, humanos. Espero que os textos e reflexões tenham contribuído, de alguma forma, para a busca desse novo caminho na construção de uma sociedade mais atenta, mais diversa e mais justa. A gente se encontra por aí. Obrigado!

A REVISTA DA CULTURA E TODOS QUE A FAZEM EXPRESSAM AQUI GRATIDÃO AOS ANOS DE JAIRO BOUER COMO COLUNISTA DA PUBLICAÇÃO. ELE DEIXA DE ASSINAR ESTE ESPAÇO, MAS PODE SER LIDO SEMANALMENTE, AOS DOMINGOS, NO JORNAL O ESTADO DE S.PAULO E, A CADA TRÊS SEMANAS, NA REVISTA ÉPOCA.