E se, ao invés de Pedro Álvares Cabral, desembarcasse no Brasil a navegadora e capitã-mor da Armada Geral, Isália I, que ao ouvir o primeiro grito de terra à vista, dado em uníssono por suas 1.500 marinheiras, se jogasse ao mar e, nadando em direção à praia, lá tirasse seu vestido pesado, com o qual quase se afogou, e experimentasse diante das índias, em troca dos espelhos, penas de pássaros sobre seu corpo nu – os índios de tocaia só observando o bafafá – e, apesar de ninguém falar a língua de ninguém, nascesse a amizade entre os povos, o juramento pela manutenção do paraíso e a felicidade das portuguesas, que finalmente teriam encontrado o Caminho das Índias, o caminho da riqueza material e espiritual, espécie de Caminho de Santiago de Compostela, só que diferente, onde a infinita diversidade cultural fosse o prêmio máximo da existência e o poema de Oswald de Andrade achasse outro final, mesmo que estivesse chovendo? Quando o português chegou/Debaixo duma bruta chuva/Vestiu o índio/Que pena!/Fosse uma manhã de sol/O índio tinha despido/O português (Erro de português, Oswald de Andrade). Fosse eu Isália I, nome fictício de uma mulher fictícia, ao chegar à Bahia, teria pedido licença e demarcado o Parque Nacional do Além-Mar, para que vivêssemos por aqui sem perturbar os donos da terra: milhões de índios belos, fortes, livres, étnicos, éticos e anticapitalistas. Depois, aguardaria a chegada dos negros que viriam de livre e espontânea vontade, e todos nós nos misturaríamos ao bel-prazer e fundaríamos a ilha afortunada das raças miscigenadas, sem passar pelo banho de sangue das civilizações, o que daria muita moral ao Brasil na ONU para falar sobre o terceiro milênio. A imaginação seria celebrada, considerada um dom sagrado, a mola mestra da comunicação e da produção de conhecimento. Milhares de tribos urbanas, rurais, virtuais continuariam a criar e a recriar seus mitos, a desenvolver seus saberes e ritos, não com o intuito de dominar ou exterminar o Outro, mas com a intenção de gerar avanços evolutivos em torno do Fogo, redescoberto a cada dia. Haveria brigas, birras, rixas, raivas, roubos, ódios, mortes, celulares, sacos plásticos, pedágios, lutas, chatices, doenças, canibalismo, um ou outro Sardinha seria devorado, mas nada parecido com Anthony Hopkins fazendo Hannibal. Não haveria genocídios, barbáries, holocaustos, pestes, guerras, nem a escravidão. Anne Frank completaria 88 anos e seria uma escritora feliz, lançando livros por aqui. E eu, de posse dos direitos autorais de Imagine, de John Lennon, vendo Pero Vaz de Caminha descansar ao relento, escreveria minha carta ao rei, que começaria assim: Senhor, imagine all the people nude. E me casaria com o escritor Mario Prata. Ficaríamos tendo ataques de riso no parque. Ataque de riso espontâneo é o orgasmo da imaginação.

Um dia, um amigo me disse que não preciso de drogas porque nasci com um baseado aceso dentro de mim. Deus foi generoso comigo, fazer o quê? Nesse momento, leio Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, pois pretendo sobreviver à crise estudando, já que o dinheiro sumiu (rsrsrs). Linguagem de internet vale aqui, não? É um livro tão legal, que fico me perguntando por que não é dado no ensino fundamental para as crianças. Elas entenderiam perfeitamente a diferença entre a ética do trabalho e a ética da aventura, por exemplo. Eu explicaria assim: “Vocês gostam de comer todas as mangas da primeira mangueira que encontram e depois sair correndo de alegria, certo? É divertido mesmo. Se mais tarde a árvore frutificar ou não, se morrer ou não, não é problema de vocês. Estamos na ética da aventura. Agora, imaginem vocês semeando a árvore, acompanhando seu crescimento, comendo os frutos que plantaram. Processo incrível, não? Estamos no terreno da ética do trabalho. Em todos nós, existem as duas éticas. Não existe nenhuma das duas éticas em estado puro no homem, como ensina o mestre Sérgio. Então, como construirmos a ética do trabalho, sem nos tornarmos uns workaholics, e montarmos a teia da solidariedade, da autonomia e da liberdade no país? E como mantermos a ética da aventura sem nos tornarmos uns beócios, e desbravarmos o país sem o legado da devastação? Nosso caráter está em jogo, entendem? Fala, Joãozinho, o que você não entendeu? “Só não entendi o que é beócio, professora.” Penso que estudar não é exatamente saber sobre algo. Mas imaginar algo, sabendo sobre ele. Assim, você sabe sobre algo em todo o seu esplendor. Imaginar é um ato de consciência. É um ato político. Nos protestos de Maio de 1968, em Paris, um dos movimentos estudantis e operários mais importantes do século 20, lia-se nos muros: “A imaginação toma o poder”. A imaginação é um poder. Ela também nos conta a história, pois imaginar o reverso de um fato, por exemplo, é dar mobilidade a esse fato e compreendê-lo em suas várias dimensões. Um momentinho: celular tocando. Oi, Mario. Ele pergunta se eu já li a entrevista dele com o bispo Sardinha, que está no livro Mario Prata entrevista uns brasileiros. Não. Vou ler. Sempre bom saber o que diz um homem antes de ser devorado em 1556 no caldeirão de uma cultura.

POR FAVOR, IMAGINEM O FINAL DESTE TEXTO PARA MIM.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E OUVIU O SAMBA DO CRIOULO DOIDO, DE STANISLAW PONTE PRETA (SÉRGIO PORTO), ENQUANTO ESCREVIA.