No início de 2006, a brasileira Gisberta foi espancada durante dias por 14 adolescentes que, acreditando tê-la matado, acabaram jogando seu corpo ainda com vida em um poço com 15 metros de profundidade. Gisberta era transexual, imigrante ilegal em um Portugal conservador, portadora do vírus da aids, prostituta e moradora de rua. Seu brutal assassinato repercutiu de tal forma pelo mundo que sua figura se tornou símbolo da luta pelos direitos LGBT e provocou discussões profundas sobre igualdade de gênero, direitos e inclusão social na sociedade portuguesa – e no brasil também. A partir deste mês até 30 de abril, o ator Luis Lobianco sobe no palco do teatro do centro cultural banco do brasil do rio de janeiro para o monólogo Gisberta. O ator interpreta várias personagens que contam a história dela e, dessa forma, como costuma dizer o diretor Renato Carrera, “Gisberta não está em cena, mas nós chegamos bem perto dela”. É sobre a temática do espetáculo que Lobianco fala a seguir.

Em sua opinião, o que mais impede que a sociedade conviva plenamente em diversidade?
A sociedade opta por preservar suas fortunas e valores. As classes dominantes tendem a não questionar padrões com receio de que o novo ameace suas certezas. A partir disso, cultivam-se os discursos de ódio contra tudo que seja diferente. Também há o interesse de se preservar um ambiente de ignorância completa para que a sociedade não pense, reflita e questione padrões.

Gisberta é um caso emblemático, mas, como o dela, muitos são cometidos no Brasil e em outros lugares. Por que, em sua opinião, um país que avança em tantos sentidos como o nosso pouco ainda se preocupa com políticas públicas efetivas em prol da segurança e do respeito aos transgêneros?
O Brasil não prioriza o avanço social. Nos últimos 500 anos, tentamos ser algo relevante no mercado global a qualquer custo. A corrupção é estrutural nas nossas políticas. Nessa realidade de escassez de necessidades básicas como saneamento, moradia, alimentação e estudo, o entendimento sobre transgêneros fica em segundo plano. Acontece que essa discussão é urgente. Somos o país que mais comete crimes com motivação transfóbica no mundo.

Asim, algo tão essencial ao ser humano, como sua identidade, ainda mais identidade de gênero, permanece um assunto rodeado de barreiras, não?
O Brasil foi construído sob valores rígidos da Igreja católica. O pensamento de que uma família só é uma família se um homem casar com uma mulher e ter filhos é a base da sociedade. Há pouco tempo começou uma discussão mais ampla sobre casais homoafetivos e o que forma uma família: valores ou afeto. Mais recente ainda é a discussão sobre acolher e entender as pessoas transgênero na sociedade e, principalmente, a compreensão de que identidade de gênero e orientação sexual são coisas diferentes. Há pouquíssimo tempo nem se usava o termo "transexual". Tudo que não fosse identificado como homem ou mulher era "viado" ou "sapatão". A duras penas estamos avançando na questão mas, por outro lado, os discursos de ódio ganham cada vez mais espaço em religiões fundamentalistas que se promovem na exploração da fé do povo e marca ampla presença na política. Os crimes de homofobia e transfobia têm íntima relação com quem promove esse ódio.

O que mais te motivou a fazer esse espetáculo? De que forma Gisberta te emociona?
Como ator de teatro, eu já buscava por uma história que me emocionasse há dois anos. Conheci a história de Gisberta através da música Balada de Gisberta, de Pedro Abrunhosa, na interpretação de Maria Bethânia, e imediatamente comecei uma pesquisa sobre o caso. Antes disso, há cinco anos criei, com um grupo de atores, uma ocupação teatral no Buraco da Lacraia, cabaré-teatro na Lapa, no centro do Rio, e nesse tempo todo o público LGBTQ e demais classificáveis e não classificáveis ocupam nossas noites de apresentações numa alegria comovente. Um oásis de diversidade. Nesse lugar, fiz amigos e parceiros de trabalho para a vida toda e me choca que muitos deles corram risco de vida o tempo inteiro só por existirem assumindo suas identidades. Também me aproxima de Gisberta a artista que ela foi. A criança que a família me revelou, que desde sempre queria cantar e interpretar mil versões de si mesma nos palcos da noite, em “Buracos da Lacraia” do centro de São Paulo, Paris e Porto.