“Prezadíssimo Deus, por 5 mil anos, nós orgulhosamente temos sido Seu povo escolhido. Agradecemos de coração esse presente. Mas, Você não acha que agora já chega!? Escolha outro povo, por favor!”

A piada foi tirada do livro Meshugá – Um romance sobre a loucura, lançado no ano passado por Jacques Fux, autor que investe na leveza e no humor. Em seu livro anterior, Brochadas, um personagem fala das diversas vezes em que recuou durante o sexo. E seu primeiro título, Antiterapias, apesar do nome sisudo, já flertava com o humor, sentimento que, para o escritor, é a peça-chave na literatura para se enfrentar monstros e questionar a sensação de repulsa e assimilação frente a uma sociedade a que se pertence e não pertence, simultaneamente.

“Por meio da gozação, é possível ofender e subjugar sem punição. Embora a intenção subjacente seja a de agredir, há um tom sempre mais leve e risível. Assim, conquistados debocham dos colonizadores, empregados de patrões, esquerdistas de direitistas, com o intuito de rebaixar o outro e se promover”, diz.

Leonardo Tonus, professor de literatura brasileira na Universidade de Paris IV e estudioso de literatura contemporânea, lembra que o humor em nossas letras atravessa as mais diversas correntes estéticas e períodos históricos. “Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Manuel Antônio de Almeida, Artur Azevedo, Machado de Assis e Oswald de Andrade constituem alguns dos nossos maiores expoentes de uma literatura ‘divertida’, que pelo viés do riso, da chacota, da sátira ou da piada nunca deixaram de expor e criticar, com seriedade e qualidade estética, as mazelas de nossa sociedade.”

Entusiasta da literatura de hoje em dia no Brasil, Tonus completa: “Ora, não há nada mais cultural do que o riso. Cito aqui Elvira Vigna, Socorro Acioli ou Micheliny Verunschk como algumas das autoras que mais me fazem rir na atualidade. Um riso desconfortável que, contrário ao riso do simples divertimento, tira-me da zona de conforto e se revela, deste modo, pura criação artística”.

Escritor e estudioso da questão (do riso), Henrique Rodrigues diz que a percepção do humor está sempre atrelada ao processo histórico e social e que, hoje, está mais ligada a instantâneos típicos da era digital. “O aspecto positivo dessa literatura hoje é a rapidez, podendo alcançar muito mais pessoas do que em outras épocas. De todo modo, é preciso que fiquemos atentos para que o humor seja mais um elemento provocador de visão de mundo do que um mero entretenimento anestésico.”

Chamada para debater a questão, a escritora Martha Batalha acredita que a longa tradição de literatura de humor exista no Brasil por causa da triste realidade do país. “Nossa literatura é repleta de clássicos que o utilizam – Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; O homem que sabia javanês, de Lima Barreto; A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado. Nos três exemplos, publicados com décadas de diferença entre eles, existe a intenção de fazer graça das rígidas regras da época”, lembra a autora de A vida invisível de Eurídice Gusmão, no qual, através do riso, trata do machismo na nossa sociedade. “Vale lembrar que escrever humor nunca é feito por pessoas satisfeitas, mas sim por gente profundamente atormentada pelos absurdos em sua volta e que produz como forma de protesto e para assimilar o entorno.”

Batalha lembra que não só a literatura, mas a imprensa nacional tem histórico nessa seara. “Vide o jornal A Manhã, O Pasquim e, mais recentemente, o Sensacionalista. Leitores de humor seguem um processo semelhante ao dos escritores – às vezes a realidade é tão dura que não soa mal tentar digeri-la com alguns sorrisos”, pensa a autora.

Victor Heringer, autor de humor sutil, avalia que a Literatura (com caixa alta) séria às vezes é confundida com aquela empolada, cheia de si e, na maior parte das vezes, um tédio, porque não vê as contradições do ser humano senão como ladainha. “A alta literatura, como eu a entendo, vem de Eurípedes, Sterne, Cervantes.” Para ele, o importante não é a graça em si, mas o deslocamento, a ironia. “É isso o que procuro, porque o deslocamento põe tudo sob nova luz. Nem sempre a ironia é engraçada, mas é sempre desconcertante”, observa.

Em seu recém-lançado O amor dos homens avulsos, o autor busca esse deslocamento, por isso, mesmo em meio a uma trama pesada, há momentos engraçados. “Eis a ironia em ação. Mas a graça é fruto do desconcerto, às vezes é um riso de nervoso ou de identificação. O humor escrachado, somente para fazer rir e esquecer, não me interessa.”

Ubiratan Muarrek, autor de Um nazista em Copacabana, nota que a ironia é uma qualidade suprema da boa ficção. Como leitor e escritor, diz que nada o comove mais do que o riso. “Mas sei que nem todos os escritores, ou a comunidade literária, veem o humor assim. Noto até certo desprezo pela narrativa cômica, que seria ‘menor’. Bem, é muito difícil fazer rir com inteligência. E não há fórmula alguma para se conseguir isso.” Entre autores que nos brindam com narrativas cômicas, ele cita Millôr Fernandes e Ivan Lessa. “Dois heróis para mim!”

Muarrek diz ainda que a arte e a literatura são, possivelmente, os únicos territórios da experiência cultural em que podemos não nos levar absolutamente a sério. “Só isso justifica explorarmos até o limite a ironia e o humor.”


“Aquele, ela sabia, era um bom marido. Antenor não sumia na rua em orgias e em casa não levantava a mão. Ganhava bem, reclamava pouco e conversava com as crianças. Ele só não gostava de ser incomodado quando ouvia seu rádio ou quando lia seu jornal, quando dormia até tarde e quando descansava depois do almoço, e desde que seus chinelos permanecessem em paralelo ao pé da cama, que seu café fosse servido quase fervendo, que não houvesse natas no leite, que as crianças não corressem pela casa, que as almofadas permanecessem na diagonal, que as janelas fossem fechadas nunca depois das quatro, que nenhum barulho fosse feito antes das sete, que o rádio nunca estivesse muito alto ou muito baixo, que nunca, de forma alguma, ele tivesse que repetir o mesmo prato em duas refeições, e que os banheiros cheirassem a eucalipto, ele não exigia demais.”
Trecho de A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha