Em apenas alguns segundos, uma bomba traz dor e horror, aniquila e muda o destino de uma cidade, de um país. Em apenas alguns segundos, um encontro transforma a vida de dois amantes. Em ambos, o inesperado, a perplexidade e a impotência diante do imponderável. A literatura de Marguerite Duras (1914-1996) e o cinema de Alain Resnais (1922-2014) se unem, o nouveau roman e a nouvelle vague geram a marca indelével que a imagem com seu poder é capaz de eternizar na retina do espectador. Hiroshima, meu amor – clássico que neste mês retorna aos cinemas brasileiros em versão restaurada – traz dois dos elementos mais caros e recorrentes na obra dos dois: o tempo e a memória. Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, os norte-americanos cravaram as tragédias de Hiroshima e Nagasaki. As traumáticas consequências físicas podem ser tratadas, documentadas, expostas, filmadas; as emocionais se instalam sem trégua e de modo mais sorrateiro.

Dois corpos se entrelaçam sob chuvas de cinzas, areia, pó reluzente, evocando a metáfora, e os suores se mesclam. Desde o início, a expressiva música de Georges Delerue e Giovanni Fusco pontua a atmosfera de tempo suspenso no qual se desenvolve a obra. Um filme dentro de um filme, uma atriz interpreta uma atriz e um amor presente desperta as dores secretas de um amor vivido. Emmanuelle Riva (Ela) e Eiji Okada (Ele) trazem no ritmo de seus diálogos e de suas respirações a cadência que identifica o estilo de Duras.

Ela participa de um filme sobre a paz e deve retornar à França, Ele é arquiteto e vive em Hiroshima. Do encontro irrompem lembranças de sua relação amorosa com um oficial alemão durante a guerra. Resnais toca em pontos nevrálgicos da história, como o fantasma do colaboracionismo francês e as punições públicas em que os cabelos, emblema da sensualidade feminina, eram tosados, fossem as mulheres acusadas de “colaboracionismo horizontal”. Ainda assim, Ela faz um trocadilho dizendo que tem uma moral duvidosa porque duvida da moral dos outros.

Resnais transita entre passado e presente, resgatando o eros de Ela. São rasgos na memória, assim como a pele das vítimas da bomba. Seus enquadramentos e a fotografia em preto e branco trazem ao mesmo tempo rigor e poesia. Percebe-se o empenho milimétrico do diretor em não perder o fio que conduz o encontro ardente dos apaixonados e a dialética de que o fim de algo traz sempre o início de outra situação, quase que simultaneamente. É assim, diz Ela, que é feliz no casamento e esperou 14 anos para sentir o gosto de um amor impossível, tornando Ele o único depositário de seu segredo amoroso e desonra. O tempo é fragmentado, assim como a memória é seletiva e as lembranças brotam aleatoriamente, sem aviso prévio. Se, no teatro, o ator tem de levar o espectador a visualizar seu relato, aqui, Emmanuelle Riva traz um brilho nos olhos que transcende a própria imagem.