Em 1957, o baiano de Juazeiro João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, então com 26 anos, chegava ao Rio de Janeiro para apresentar a batida diferente que havia criado no violão, a qual, já no ano seguinte, seria ouvida no disco que continha canções como Chega de saudade e Bim bom. No álbum, ele também demonstrava seu modo de cantar baixinho, quase sussurrando, ideal para as festas que aconteciam em apartamentos na zona sul da capital fluminense. Ao mesmo tempo, a cantora Elizeth Cardoso registrava o álbum Canção do amor demais, com músicas de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, que em 25 de janeiro teria completado 90 anos. Nascia assim a bossa nova, gênero musical que, 60 anos depois, tem sua presença e importância pouco reconhecidas no Brasil.

Ainda é possível encontrar resquícios dela na ruazinha localizada entre os números 21 e 37 da Duvivier, em Copacabana, no Rio de Janeiro, que ficou conhecida como Beco das Garrafas e foi inúmeras vezes apontada como o berço do ritmo musical, uma vez que ali aconteceram os primeiros shows de seus principais astros. Depois de 40 anos fechado, o Bottle’s Bar voltou a funcionar ali, em 2014, junto com uma lojinha com artigos à venda, como CDs, camisetas etc.


No número 129 C da Rua Vinicius de Moraes é onde também se encontram preservadas muitas histórias do gênero. É ali que fica a Toca do Vinicius, que conta com uma livraria, um centro de referência, uma calçada da fama e até um denominado “museuzinho”. Trata-se de um espaço criado em 1993 por Carlos Alberto Afonso, amante e colecionador de tudo relacionado ao estilo musical e seus ícones.

Se esses locais e alguns barzinhos mantêm viva a memória da bossa nova, a batida de violão dela e a maneira de cantar baixinho parecem ter ficado para trás. Todavia, muitos de seus ícones que permanecem vivos e atuantes no cenário cultural brasileiro veem as mudanças com bons olhos. Esse é o caso do violonista, cantor temporão e compositor Roberto Menescal, autor de inúmeros clássicos em parceria com Ronaldo Bôscoli. “A bossa nova foi se modificando e os artistas que a praticam também andaram com ela para frente. Por exemplo, o grupo Bossacucanova faz uma bossa dançante. Pude tocar com eles em três tours pela Europa, onde chegamos a nos apresentar para 200 mil pessoas em alguns shows!”

O crítico musical Tárik de Souza pensa de modo parecido: “A bossa nova é um segmento da MPB e, como tal, continua em movimento, com novos criadores e cultores. Se houvesse uma oferta mais democrática de diversidade estética nos meios de comunicação de massa, a bossa teria um relevo maior”. Além do Bossacucanova, ele cita, como cultivadores do ritmo, as cantoras Marcela Mangabeira, Flávia Bittencourt, Ticiana Valente, Maria Luiza, Fernanda Takai, Mallu Magalhães, Verônica Sabino, Fernanda Cunha, Leila Pinheiro, Bebel Gilberto (filha de João Gilberto e Miúcha) e Vanessa da Mata, que gravou um disco dedicado a Tom Jobim. Podemos incluir aqui também a cantora portuguesa Carminho.

LÁ VEM A NOVA
A cantora Cris Delanno, brasileira de origem norte-americana, é uma das artistas da nova geração a ter no repertório muitas canções da bossa nova. Para ela, o gênero musical está bastante disponível para quem o procura, só que falta o interesse ser despertado em muita gente no Brasil. “No Rio, quando um turista chega e pergunta – e sempre pergunta – onde pode ouvir bossa nova, não há tantas opções de resposta. E olha que é nosso gênero musical mais reconhecido internacionalmente. Mas se você pega um teclado, daqueles que têm ritmo, vai encontrar rock, pop e também bossa nova. É um dado relevante”, garante.

Delanno destaca ainda a paixão de muitos artistas internacionais pelo ritmo. “A Stacey Kent, uma cantora de jazz bem intimista, gravou nos últimos anos CD e DVD com Marcos Valle e, mais recentemente, com Roberto Menescal. A Diana Krall fez sucesso cantando repertório de jazz no estilo bossa nova. Há uma demanda de gravações, que começou com o Japão, de músicas pop de um jeito bossa nova. Isso aconteceu mais fortemente no final do século passado.” Ela também garante que há artistas fazendo músicas no estilo original da bossa nova, mas “se eles não têm novas composições ou nova proposta de arranjo, não aparecem muito. O Bossacucanova tem composições não muito antigas que são totalmente bossa nova, só que são apresentadas com uma batida eletrônica – muitas vezes samplers de gravações antigas –, que é a marca do grupo”.

Mas Cris Delanno não vê o presente repetir o passado, como um museu de grandes novidades. “Estamos vivendo em outro tempo. A genialidade de Tom Jobim e tantos outros faz com que até hoje músicas sejam compostas com influência da bossa nova. Em filmes, séries, sempre que tem um momento que cabe, entra uma do estilo ou inspirada nele. Acho que virou um jeito de tocar e cantar, e isso foi resultado da genialidade dos nossos compositores, tantos além do Tom: Carlos Lyra, Menescal, Donato, Johnny Alf, Durval Ferreira, Toquinho...”, assegura.


É inegável que, como reconhece Roberto Menescal, a presença desse gênero musical nos meios de comunicação é cada vez menor. “A bossa nova e a MPB praticamente têm um espaço muito pequeno nas rádios brasileiras, pois o que chamávamos de música popular hoje mudou de público. Atualmente, deveríamos chamá-la, como faz a cantora Joyce, de música criativa brasileira”, explica. Mas ele faz um adendo: “Na internet, você tem tudo o que quiser. Se procurar por bossa nova, encontra um mundo de músicas nesse estilo”.

Tárik de Souza tem visão um pouco diferente. “Em relação à mídia de massa e à maioria do público que segue suas imposições, a bossa morreu há muito tempo. Ela sobrevive como influência e mesmo renovação de repertório na área de nicho da MPB. Frequentemente, há uma bossa inédita nos discos dos novos intérpretes e músicos”, garante. E acrescenta: “O Brasil é monocultural e não tem hábito de preservar nada. Nem mesmo monumentos de concreto e ferro. Por isso, não há preservação do samba – ele vai se reinventando através de releituras ou fusões com os gêneros emergentes, como rock, soul e rap. Quanto à bossa, por ser um episódio dentro da história do samba, ela é mais vulnerável, embora, como eu disse, sempre apareçam inéditas em discos dos novos”.

VIDA NO EXTERIOR
Roberto Menescal acredita que o samba sempre foi mais popular no Brasil e a bossa no exterior e que, assim, os dois se mantêm preservados. Tárik de Souza não acredita que o estilo faça exatamente sucesso no exterior, mas garante que possui um público cativo fora do país. “Por lá, há artistas que a cultuam, o que já não ocorre tanto aqui, por causa do veto da mídia de massa a qualquer tipo de música minimamente elaborada”, lamenta. O compositor Paulo Sérgio Valle indica uma possível razão: “Sem dúvida, a bossa nova faz mais sucesso no exterior do que no Brasil, pois trata-se de uma música muito sofisticada para os padrões culturais do grande público. Já a música popular brasileira mudou muito. E não mudou para melhor”. No entanto, ele acredita que o estilo ainda revive em muitos compositores e nunca será esquecido, pois sempre servirá de base para músicas mais sofisticadas. De acordo com Roberto Menescal, isso se deve ao fato de a bossa ter sido um novo começo para a música brasileira na década de 1950, uma vez que predominava o samba-canção. “Nós, muito jovens na época, o adorávamos, mas, ao mesmo tempo, sentíamos a necessidade de letras mais leves, pois, com 18 anos, era difícil cantarmos ‘ninguém me ama’ ou ‘se eu morresse amanhã de manhã’, etc”, diz.

ENTRE OS JOVENS
Os jovens de hoje conhecem de fato a bossa nova? O natalense Artur Maricato Curinga, de 20 anos, que faz bacharelado em tecnologia da informação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, garante que, apesar de gostar, sabe muito pouco sobre o gênero. O que sabe vem do convívio com o padrasto, Carlos, que é músico e trabalha bastante com o estilo. O mesmo acontece com Letícia Erédia, de 21 anos, estudante de psicologia na Unip de São José do Rio Preto, habituada a escutar muita música no celular e no carro. “Tenho dificuldade de distinguir MPB de bossa nova, mas adoro os dois ritmos, se é que eles têm diferença. Meus pais gostam muito e sempre colocam nos almoços de domingo. Nasci e cresci ouvindo”, explica. E justifica: “Acho que ela poderia estar mais presente nas mídias. O Brasil tem de valorizar mais suas essências. Eu adoraria saber mais, pois amo conhecer músicas novas e gosto muito da melodia e das letras que já conheço”.

Já Isabela Chechim, de 21 anos, estudante de biologia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, teve contato com a bossa nova por meio de sua família e lamenta que na escola ninguém nunca tenha ensinado nada a respeito. “Levando em conta o gosto musical da maioria das pessoas com quem convivo, a bossa está surpreendentemente presente, e acho que ela também está disponível bem facilmente entre todas as mídias de músicas para quem quiser ouvir.”

Se há discrepâncias a respeito da presença desse gênero musical nas novas mídias, o fato é que, diferentemente do tango, na Argentina, e do jazz, nos Estados Unidos, um dos nossos mais admirados estilos musicais corre o risco de se perder caso não seja mais tocado e apresentado aos mais jovens, principalmente nas escolas. Basta lembrar que, em maio do ano passado, música passou a fazer parte do currículo da educação básica no Brasil. Para quem tem interesse, Roberto Menescal lembra que existem inúmeros livros sobre o estilo, como o hoje clássico Chega de saudade, de Ruy Castro, e agradece, feliz, ao fato de ele, assim como outros companheiros, caso de Marcos Valle, Carlos Lyra e Wanda Sá, nunca ter trabalhado tanto quanto atualmente.