Verão combina com sorvete, disso ninguém discorda. Mas muita gente associa sorvete, colorido e açucarado, com criança, preferindo um drinque geladinho para enfrentar o calorão tropical. E se o sorvete fosse exclusivamente para adultos, feito com cachaça, gim ou vodca? Soa mais divertido, muitos devem ter respondido, já salivando. Afinal, bebidas destiladas fazem a alegria da humanidade em boa parte do mundo. E muitos países têm sua pinguinha – seja de cana, uva, arroz, anis, batata...

Com uma clientela mais adulta do que infantil, a chef gelatière Marcia Garbin, da paulistana Gelato Boutique, preparou sabores especiais para o verão, como sorbet de taperebá (cajá) com cachaça orgânica. Outra opção são as caipiroscas, à base de vodca e frutas. E ainda dois sorvetes à base de gim, como gim-tônica com maracujá e o drinque Cosmopolitan. “Os sorvetes alcoólicos combinam bastante com o verão, porque dão aquela sensação de estar na praia e tomar uma caipirinha”, resume Marcia. “O sorvete que leva álcool evapora na boca e o sabor explode.” O álcool impõe desafios ao preparo, porque a bebida desestrutura o balanceamento de líquidos, sólidos, proteínas e gorduras do sorvete. E, para garantir que o sabor da bebida seja verdadeiro, o álcool usado não é evaporado. Márcia despeja a bebida da garrafa. Daí o teor alcoólico de um sorvete ser muito próximo ao de uma cerveja bem encorpada, com 8%, embora ainda muito longe dos destilados – com teores em torno de 40%.


FALADO, MAS POUCO BEBIDO
Pela definição do Dicionário Aurélio, aguardente é uma bebida de elevado teor alcóolico (até 60%) que se obtém por destilação, de inúmeras frutas, cereais, raízes, sementes e tubérculos. A lista de possibilidades é grande e variada, a começar pela cachaça brasileira, passando por pisco (Chile), tequila (México), bagaceira (Portugal), genebra (Holanda) e muitas outras pouco conhecidas por aqui. Um dos autores do livro O essencial em cervejas e destilados (Editora Senac), Cesar Adames explica que aguardente é um nome genérico, sendo o correto falar em destilados.

Feita a partir da destilação de um mosto (substância vegetal que contenha açúcar) ou fermentado que contenha álcool etílico, a aguardente é, em uma definição muito livre, a pinguinha de cada povo, de cada país. Reflete o gosto e a cultura locais, além da própria história da terra. Na França, kirsch. Na Itália, grappa. Na Escandinávia, aquavit. Na Croácia, maraska – e por aí vai.

Até nas prisões, os detentos improvisam alambiques e usam frutas, pão ou arroz para fazer uma pinguinha, conhecida como “maria louca”. Deve ser péssima, mas chega a ser vendida por R$ 200 o litro tal é a demanda. A título de comparação, 1 litro de vodca importada custa menos de R$ 100; de vodca nacional, por volta de R$ 30; e de cachaça popular, R$ 10.

Há bebidas muito faladas e pouco consumidas no Brasil. Um exemplo é o poire – aguardente francesa de peras (poire), que é degustada após a refeição. O ex-deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), que presidiu a Assembleia Constituinte de 1988, era grande fã da bebida e, quando se reunia com aliados políticos, dizia-se que a “turma do poire” estava junta.

O arac libanês é outro exemplo de aguardente pouco consumida por aqui. É feito a partir de uvas e anis, com teor alcoólico dos mais elevados, acima de 50%. No Líbano, é tão consumido como a caipirinha brasileira, mas é diluído em muita água e gelo em copos altos, ganhando assim uma cor branca, leitosa. Mais do que dar sabor, o anis dá perfume ao arac, algo adocicado, um pouco enjoativo. É bebericado aos poucos, e sobe muito.

Apesar da enorme popularização da tequila no Brasil nos últimos anos, o mezcal mexicano ainda é uma novidade por aqui, e cercado de lendas, porque é confundido com mescalina (produzida a partir de uma espécie de cacto nativo do México e do Texas, o peiote). Nos anos 1960, diversos autores, como Carlos Castaneda (1925-1998), escreveram sobre os efeitos dessa droga. Já a tequila e o mezcal são feitos de agave – planta nativa de terras vulcânicas –, embora a tequila seja preparada apenas a partir de um tipo específico de agave. Ou seja, o mezcal é o primo pobre da tequila mexicana.


SOJU, MUITO PRAZER
Destilado mais consumido no mundo em termos de volume, segundo ranking da revista inglesa Drinks International, de 2014, o soju é a branquinha da China, Japão e Coreia do Sul. Pode ser feito de arroz, batata-doce ou cevada, e tem teor alcoólico entre 35% e 40%. A bebida é massivamente consumida na Coreia, por ter gosto levemente adocicado, o que combina muito bem com a culinária condimentada do país. Se comparado ao saquê, feito de arroz, o soju tem aroma mais forte. Em lojas e bares dos bairros da Liberdade ou do Bom Retiro, em São Paulo, é possível tanto comprar como provar soju. Mas não se anime muito, não.

Há pesquisas que dizem que os coreanos bebem o dobro de shots (doses) de destilados por semana em comparação com os russos, os quais têm fama universal de grandes beberrões. No ranking inglês, a vodca é o segundo destilado mais consumido no mundo. Cesar Adames explica que a bebida, incolor e quase sem sabor, é amplamente usada em coquetéis, sendo a mais fabricada no planeta, com produção em 180 países. E, de fato, a Rússia é o maior consumidor. O nome vodca é o diminutivo de água, algo como “aguinha”, mas não se tem certeza da origem etimológica da palavra.

Qual é a melhor vodca do mundo? Adames diz que a qualidade da matéria-prima utilizada e também a forma de destilação adotada são fundamentais, mas o paladar do consumidor também conta, o que torna duvidosos os rankings das melhores marcas. “A melhor é aquela que você considera a melhor”, desconversa ele, diante da pergunta.

O uísque, quarto destilado mais consumido globalmente, também tem produção difundida. É natural a associação da bebida à Escócia, terra de produtores cultuados, com fãs inabaláveis. Mas Canadá, Japão, Índia e também Brasil são alguns dos quase 70 países que fabricam a bebida.
A CACHAÇA É COISA NOSSA
Terceiro colocado entre os destilados mais consumidos ao redor do planeta, segundo o ranking da Drinks International, a cachaça é coisa nossa. Sua história começa no período colonial, quando os portugueses introduziram a cana-de-açúcar no Brasil e também o instrumental básico para destilação. Os estudiosos não sabem ao certo se o primeiro alambique foi instalado em São Paulo ou em Pernambuco. Em outros países latinos, também produtores de cana, não se produz cachaça, e sim rum. A branquinha é feita de garapa, enquanto o rum, de melado de cana.

Desde 1996, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu critérios de fabricação e comercialização, a cachaça passou a ser um produto tipicamente brasileiro. Para levar esse nome, tem de ser produzida no Brasil. E seguir determinados parâmetros, como, por exemplo, a graduação alcoólica, que deve ser de 38% a 48% em volume. Se abaixo ou acima desse intervalo, não pode levar o nome de cachaça. É aguardente de cana. Ou seja, toda cachaça é uma aguardente de cana, mas nem toda aguardente é cachaça. Até porque são fabricadas no país aguardentes de caju, maçã, banana e outras invenções.

No Brasil, a grande campeã de vendas é a aguardente 51, do famoso slogan publicitário “uma boa ideia”, segundo pesquisa de 2015 da consultoria Euromonitor. No ranking internacional de destilados mais vendidos, a 51 ocupa, assim, as primeiras posições, superando marcas mundialmente conhecidas, como a do uísque Johnnie Walker.

VENCENDO PRECONCEITOS
Mas o mercado de cachaça é muito mais sofisticado. Pelas contas do Instituto Brasileiro da Cachaça, são 4 mil marcas. Há, por exemplo, bebidas envelhecidas por períodos variados e em diferentes madeiras, não só em carvalho, que é tipicamente usado em destilados. A amburana, natural do Nordeste, é muito apreciada, porque dá um viés adocicado à bebida. “É um sabor mais fácil de agradar o paladar”, diz Paulo Carvalho, sommelier de cachaças do premiado restaurante paulistano Mocotó.

No dia a dia do estabelecimento, Carvalho encontra duas resistências ao consumo da bebida: o primeiro é o preço das cachaças mais sofisticadas, que pode chegar a R$ 75 a dose de 50 mililitros, como a lendária Havana, produzida em Salinas (MG). “Nem uísque tem esse valor” é a queixa mais comum por parte dos clientes. “Mas quem pode e conhece toma a bebida”, conta Carvalho. Quem está “aprendendo” tende a optar por bebidas com dose em torno de R$ 30 a R$ 40, dentre os mais de 110 rótulos do restaurante. A outra dificuldade é o preconceito enraizado. “Nos últimos anos, isso melhorou, mas ainda há muita resistência”, diz o sommelier. É mais fácil o cliente pedir uma caipirinha do que tomar uma dose de cachaça – tanto que são vendidos de 5 mil a 6 mil coquetéis ao mês. A Minha Nêga, feita de cachaça envelhecida, rapadura, limão taiti e siciliano, leva a bebida armazenada em amburana, o que acaba despertando a curiosidade por ela. Muitos pedem uma dose. E Carvalho ensina que cachaça não é só um aperitivo, dizendo que é possível seguir com a bebida durante a refeição. Se o cliente pedir carne de sol, ele sugere cachaça envelhecida em carvalho (um sabor adocicado que combina com carne) ou em jequitibá, o que confere um toque picante à bebida.