“Tudo lotado! Tudo esgotado! Toda arquibancada, cadeiras, poltronas, tudo, tudo!”, informava exultante o empresário do grupo, Moracy do Val, no camarim onde se maquiavam os integrantes dos Secos & Molhados, naquela noite típica do verão carioca, no dia 10 de fevereiro de 1974.

De fato, no Ginásio do Maracanãzinho, mais de 20 mil pessoas se espremiam e aguardavam ansiosas o início do espetáculo, enquanto outras tantas tentavam entrar, mas sem êxito: o lugar estava completamente lotado. Minutos depois, João Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso foram chamados para subir ao palco e iniciar a tão aguardada apresentação. Transmitido pela Rede Globo, o locutor perguntava com sua voz grave antes de iniciar o espetáculo, ainda nos letreiros do programa: “Afinal, os Secos & Molhados são a explosão de um novo caminho musical ou de um comportamento?”. Eram os dois.

O GRANDE DIA
“Era um domingo e, à tarde, aconteceu um jogo pelo Campeonato Brasileiro, no qual o Palmeiras derrotou o Vasco por 1 a 0 em pleno Maracanã. Me lembro bem: nosso show teve mais público no Maracanãzinho do que esse jogo de futebol”, relembra Moracy, entusiasmado. “Foi a consagração dos Secos & Molhados naquele momento da história da música brasileira”, afirma Ney Matogrosso, o músico que deu forma ao conjunto, com sua voz incomum, sua postura cênica e sua extravagância visual.

Mas como aqueles três rapazes alcançaram esse sucesso assombroso em tão pouco tempo? “Eu trabalhava no Última Hora e conhecia o crítico teatral João Apolinário”, conta Moracy do Val. “Certa noite, depois de assistir à peça A viagem, encontrei o filho dele, João Ricardo, que me convidou para ir ao show de seu conjunto, que iria se apresentar à meia-noite na Casa da Badalação & Tédio, uma espécie de café-concerto que Ruth Escobar havia montado. Foi assim que conheci o grupo Secos & Molhados, formado pelo João Ricardo, Gerson Conrad e também por um ator que, coincidentemente, eu tinha acabado de ver interpretando um português de bigodão na peça. O nome dele: Ney Matogrosso. Quando vi aquele show arrebatador, imediatamente percebi o potencial de um grande sucesso. Então, pouco tempo depois, apresentei o grupo à Continental, que gostou do conjunto e me pediu para produzir o disco”, esclareceu o produtor e empresário em uma entrevista dada ao jornalista Celso Sabadin, que serve de base para um livro de memórias, a ser lançado ainda em 2017.


A SE ENCARAR A GUARDA
O show dos Secos & Molhados no Ginásio do Maracanãzinho foi um divisor de águas para a música popular brasileira. “As pessoas acharam que era uma loucura a gente sair do [Teatro] Tereza Rachel – onde lotávamos todos os shows – e ir para o Maracanãzinho”, confessa Ney Matogrosso. E realmente era uma jogada muito arriscada. Até aquele dia, nunca um artista brasileiro tinha conseguido encher o lugar. E foi um enorme sucesso: eles conseguiram não só lotar o ginásio como deixar uma multidão do lado de fora que daria para outra sessão.

Mas, no início do show, as coisas não ocorreram com tanta tranquilidade. Já nos primeiros acordes, Ney percebeu que havia um tumulto. As pessoas estavam tentando ir para o centro do ginásio, vazio, mas a polícia reprimia, batendo nelas. “Nem pensei e gritei para os policiais: ‘Parem com essa merda’. Me mandaram começar a cantar, mas eu queria que as pessoas pudessem entrar livremente e falei que só começaríamos o show quando eles parassem com a agressão. Então, cortaram meu som. Nesse momento, o público começou a jogar moedas no chão e os militares perceberam que aquilo ia virar uma tremenda confusão e terminaram liberando as pessoas, que ocuparam o espaço central do ginásio. Aí sim, depois que tudo se acalmou, começamos a cantar Rosa de Hiroshima”, finaliza, com satisfação.

GÊNESE
João Ricardo já tinha o grupo com esse nome desde o início dos anos 1970, mas com outros integrantes. Foi com a chegada de Ney Matogrosso, apresentado pela amiga Luli, sua parceira nas músicas O vira e Fala, que tudo se transformou radicalmente. Claro que não foi de uma hora para outra que a mudança aconteceu. “No início, havia a música, dois violões e uma gaita”, diz Ney, contando a gênese do conjunto. “Ficamos um ano ensaiando dessa maneira, sem maquiagem. O João queria entrar no palco com boinas de Che Guevara! Eu jamais faria isso. Na nossa primeira apresentação, nesse lugar que o Moracy assistiu, eu perguntei: “Qual é o espaço que vai sobrar para mim aqui?”. E me deram 1 metro quadrado. Então, falei: ‘Aqui vou fazer o que quiser’. Mas nem eu nem eles sabiam o que eu ia fazer. Só não queria ser crooner de um conjunto. Queria mais. Eu vinha do teatro e todas as peças que fiz eram musicais, nas quais cantava, dançava e me caracterizava. Tinha peças em que eu saía de cena três vezes e voltava diferente, como outro personagem. Então, levei para os Secos & Molhados essa minha experiência no teatro. Criei um visual, porque não havia visual nenhum. E essa imagem inventei porque não queria perder o direito de andar na rua. Não esqueça que eu já tinha 30 anos”, enfatiza.

Realmente, Ney Matogrosso era o mais velho dos três. E o mais experiente também. E naquele metro quadrado, com o corpo quase desnudo, seu gestual e as canções elegantes contagiaram o público, que os aplaudiu de pé. Eles se tornaram a coqueluche das noites paulistanas. Mas a mudança no visual não foi bem-aceita imediatamente. Havia um enorme preconceito pela forma como Ney passou a se apresentar. “Logo no início, quando a gente começou a aparecer, marcaram um jantar comigo em um restaurante em São Paulo e me deram uma prensa. Disseram que estavam falando que nós éramos um grupo de homossexuais e que eu não podia me apresentar daquele jeito. Então falei que eles dissessem que não eram homossexuais. Simples assim. Eles não concordaram e insistiram na minha mudança, e eu falei: ‘Tá bom, então coloquem outro no meu lugar’. Mas era tarde, não dava mais para colocar outra pessoa. Já tinha detonado a história. E aí eles perceberam que aquilo que eu fazia era muito atraente para o público.”


Sim, o público queria novidade. Apesar de a MPB ir muito bem, obrigado, 1973 marcava o nono ano do golpe militar que levou o país a uma feroz repressão política e cultural, e o governo do general Garrastazu Médici foi o mais autoritário e sangrento. Somente em 1973, foram registrados 58 mortos e desaparecidos, além de 736 denúncias de tortura, segundo dados do Projeto Brasil: nunca mais. O medo pairava no ar, mas a intensa propaganda ufanista do governo, apadrinhada pelo “milagre econômico brasileiro”, jogava uma nuvem de fumaça naqueles anos de chumbo.

Então como se encontra o caminho do sucesso com tanta falta de liberdade? Sendo ousado, como eram ousadas as apresentações do grupo. O LP foi gravado e produzido nos meses de maio e junho de 1973. Na semana de lançamento, shows lotavam todos os teatros onde eles se apresentavam, e Moracy conseguiu levar o grupo para o Clube dos Artistas, programa de boa audiência da TV Tupi, comandado por Aírton e Lolita Rodrigues. “Quando começamos a fazer shows no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, depois que lançamos o disco, teve de ir até polícia para conter o público. Aquela galeria virou uma loucura”, recorda Ney. “Mas nessa época já tínhamos aparecido no Fantástico, programa que estava começando aos domingos na Globo. E aquilo nos levou para todo o Brasil instantaneamente. Mas nada disso teria acontecido se não fosse o Moracy. Ele foi o único que se aproximou de nós com uma visão. Imagina. Nós ficamos rodando de mão em mão, enviamos nosso trabalho em cassete para as gravadoras e ninguém prestou atenção. E o Moracy tinha planos muito grandiosos para os Secos & Molhados. Ele queria que fizéssemos um show no Xingu para os índios. Eu achava uma maravilha. Ele tinha o tino da coisa.”

Moracy relembra como trabalhava na Continental para alcançar esse sucesso: “Eu fazia a cabeça das pessoas da divulgação e da promoção, das pessoas que faziam o disco tocar nas rádios. Fiz um press-release dizendo que ‘nunca ninguém viu nada igual desde que John Lennon decretou o fim do sonho’, frase que tirei de uma matéria sobre o fenômeno Secos & Molhados que acabara de sair na revista Veja. Além disso, decidimos que os Secos & Molhados não dariam entrevistas, porque o que o grupo tinha a dizer já estava nas músicas e no espetáculo. Era uma estratégia”. “A música O vira, por exemplo, foi a mais tocada no Carnaval porque mandei imprimir várias partituras e as distribui para todas as orquestras de todos os clubes onde haveria bailes. Fiz coisas que na época ninguém fazia. E nunca paguei ‘jabá’ para ninguém. Sou absolutamente contra isso. As rádios tocavam porque era sucesso”, conta, orgulhoso.

Porém, brigas internas começaram a pôr fim a um belíssimo projeto que unia teatro, dança e um teor musical de alta qualidade. Os Secos & Molhados começavam a desmoronar. “João sofria muito com o sucesso de Ney, e por isso o grupo não deu certo por mais tempo. João é um autor genial, foi uma pena ele ter estragado a carreira por causa de ciúmes”, conta Moracy.

Ney Matogrosso chamou de golpe o afastamento do empresário do grupo: “Antes de viajarmos para uma turnê no México, o João pediu para que assinássemos alguns papéis para manter nosso escritório funcionando em São Paulo e, de boa-fé, eu e o Gerson assinamos. Já estranhamos que o Moracy não viajou com a gente. Quando chegamos, soubemos que tinha sido dado um golpe, e o Moracy não estava mais com a gente. João disse que eu tinha assinado o afastamento, mas não assinei nada para tirar o Moracy. Mas aí já era tarde”.

Foram seis meses entre o espetacular concerto no Maracanãzinho e o fim dos Secos & Molhados, em 12 de agosto de 1974. A imprensa, incrédula, acompanhou o desmanche com uma ponta de decepção. Depois do show icônico, 43 anos se passaram, e o que ficou foi um sucesso fugaz de quatro pessoas que marcaram a história da música popular nacional, em plena era da ditadura militar, com um som e um gestual desafiadores que os brasileiros amavam. “Acho que meu maior mérito foi simplesmente não ter deixado ninguém atrapalhar a criação dos Secos & Molhados, que vieram com as músicas todas prontinhas”, recorda Moracy. Ney concorda: “Estava calcado em um repertório muito bom e, por isso, achava que podia me exceder”. É verdade: eles se superaram em beleza, talento e capacidade de comunicação com o público.