Rabisquei outro dia na minha agenda de 2017, precisamente na página do dia 11 de janeiro: tudo é viço, vício, vicissitudes, a vida ao vivo é em cios, suplícios, fins, atitudes, no início tu eras tudo pra mim, depois tu já eras, em mim tudo é finito, eu habito meu fim. Dia 12 de janeiro: que se acabe o casamento, a peça de teatro, o filme, a novela, a amizade, a comida, a família, o dinheiro, a tempestade, a bonança, o governo, os tremores. Vou recomeçar daqui. Dia 15 de janeiro: detesto rompimentos, separações, guerras, despedidas, términos, invernos, brigas, rixas, viagens com passagens de ida. Decreto o fim do fim. O que é bom deve ser pra sempre. Dia 16 de janeiro: definição de angústia: sensação contemporânea do homem, desde sempre. Parece que você vai ser enterrada viva. Dia 19 de janeiro: morre o ministro relator da Lava-Jato em desastre aéreo. No Brasil até o passado é incerto – quem disse isso? No Brasil todo acidente é suspeito. Mesmo que seja acidente. Ter uma agenda. Para quê? “O futuro não é mais o que era”, Paul Valéry. Você tem 24h para assinar o último abaixo-assinado em favor da vida. Dia 20 de janeiro: “Se foi pra desfazer por que é que fez?”, Vinicius de Moraes. Estudar o texto da novela. Fazer as pazes com o marido. Ir para o ensaio. Onde está o texto de João Cabral de Melo Neto? Aqui. Leia no metrô. “Fazer o que seja é inútil/Não fazer nada é inútil/Mas entre fazer e não fazer/Mais vale o inútil do fazer/Mas não, fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer/Mas fazer o inútil sabendo que ele é inútil/E bem sabendo que é inútil/E que seu sentido será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer com mais desdém/Ou então dizer mais direto ao leitor Ninguém/Que o feito o foi para ninguém”. Dia 30 de março: não sei, não chegou. Dia 22 de outubro: não sei, não chegou. Dia 31 de dezembro: onde você vai passar o Réveillon? Clarice, por favor, você quer parar com isso. Você está escrevendo sobre o quê? Sobre a finitude de tudo. Sobre essa angústia que estamos vivendo. Tudo é ambíguo, ambivalente, duvidoso, movediço, sem amanhã, sem futuro, tudo vai acabar de repente. Você viu a tensão dos repórteres e dos comentaristas da TV durante a matéria sobre o ministro? Alguns atropelavam as palavras numa demonstração clara de tensão. Algo muito sério está acontecendo. Ao mesmo tempo, eu tenho de saber o que vou fazer no Réveillon? Eu tenho de comprar maquiagem? Tô escrevendo sobre essa esquizofrenia. Tô escrevendo nesse momento na varanda de um bar. Acaba de passar por mim um morador de rua. Ele não caminha. Ele vaga pelas calçadas, em trapos, buscando pinga e comida. Para ele, o mundo já acabou há muito tempo, não? Ele tá nem aí se o Donald Trump é o novo presidente dos EUA ou não. Ele já é um sobrevivente do fim do mundo. E, para ele, eu sou uma inútil. Vivo como se o futuro ainda fosse o que era: um lugar amplo, vasto, cheio de possibilidades, encontros, alegrias, afetos. Uma criança que não sabe de nada: está sempre na expectativa de começar a brincadeira de novo. Convivem em mim muitas consciências. Dia 21 de janeiro: madrugada, 1h26: tudo é finito, menos o poderoso instinto de sobrevivência do ser humano. Hoje não assisti ao noticiário. Vou visitar meu pai. Após a queda, a fratura do fêmur, a operação, a fisioterapia, os remédios, aos 91 anos, reaprendeu a andar. Pai, de onde vem sua força? O que mais pode você? A morte o encontrará de pé. Tudo grita pela vida e continuará gritando. Nada é inútil, Clarinha. É assim que ele me chama. Clarinha, nada é inútil. Muito menos o teu amor pelos poetas. E pelos vagabundos. 1h55. Não se esquecer de assinar o abaixo-assinado a favor da Universidade do Estado do RJ. Está à deriva. Meus avós amavam o Brasil. Meus pais amam o Brasil. Eu amo o Brasil. Meu filho quer ir embora. Tudo é cíclico. É a história. Dia 22 de janeiro: que bom, fiz as pazes com o Zé. Reaprender a andar. Não para esquecer que tudo é cíclico, isso nunca. Mas porque é o mais difícil.

CLARICE NISKIER É ATRIZ E GOSTARIA DE SABER O QUE SIGNIFICA AMAR O BRASIL. ELA PASSA A ASSINAR BIMESTRALMENTE ESTA COLUNA.