Em dezembro de 1917, o centro de São Paulo abrigou uma pequena exposição individual de uma jovem pintora, que mostrava pela primeira vez o resultado de seus anos de estudo na Europa e nos Estados Unidos. Estavam em exibição 53 obras, sendo 28 pinturas de paisagem e retratos, dez gravuras, cinco aquarelas, além de desenhos e caricaturas. Essa despretensiosa coletânea destinada a resumir seu trabalho causou um cataclisma na arte brasileira, cujos tremores podem ser sentidos até hoje. Há 100 anos, Anita Malfatti (1889-1964) abalava as estruturas do academicismo nas artes plásticas nacionais e dava o primeiro passo em direção ao modernismo e à Semana de Arte Moderna, que viria a ocorrer em 1922.

A primeira mostra de arte reconhecidamente modernista realizada no país suscitou todo tipo de reação, do assombro ao deslumbramento, da indignação ao entusiasmo. Enquanto o escritor Mário de Andrade gargalhava de alegria ao ver as obras, Monteiro Lobato publicava o famoso texto em que o criador da boneca Emília teceu severas críticas ao trabalho da artista, fazendo, inclusive, com que cinco obras compradas fossem devolvidas. No entanto, passado um século, o que ficou do vigor artístico da obra daquela pintora tímida e até um pouco reclusa?

“A Anita inaugura uma linhagem presente em outros momentos da arte brasileira, como o expressionismo. Não é uma ligação direta, mas boa parte da pintura dos anos 1980 é gestual, de grande porte, com muita cor, cores fortes, pinceladas marcadas, isso tudo a Anita já apresentava”, afirma Regina Teixeira de Barros, curadora independente, especializada em arte brasileira moderna e professora de história da arte moderna e contemporânea na Faculdade Santa Marcelina.



Sob a curadoria de Regina, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) abriu, no dia 7 de fevereiro, a exposição Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna, apresentando cerca de 70 obras representativas de sua trajetória. De acordo com ela, Anita nunca se acomodou e a mostra deixa isso claro, retratando diferentes fases da artista. “A ideia é mostrar uma Anita com um olhar mais contemporâneo, entendendo o modernismo brasileiro não só como vontade de ruptura, mas também como desejo de olhar para a tradição da cultura e criar um diálogo com a tradição da pintura”, diz.

Para Rita Lages Rodrigues, historiadora e professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, mais do que as obras em si, os acontecimentos na vida de Anita, em especial a exposição de 1917, marcam a história da arte brasileira, “ao colocarem-na em um lugar de destaque tanto em relação ao local de centralidade das exposições de arte moderna que antecederam a Semana de Arte de 1922 quanto à presença feminina nas artes visuais, em especial na pintura. Antes da Semana de 1922, quais mulheres são citadas na história das artes visuais no Brasil? Junto à abertura artístico-conceitual da arte moderna, a mulher aparece também como um novo agente neste mundo”, explica.

A faceta pioneira de Anita é uma característica que merece destaque, por ter sido o ponto de partida da discussão em torno do modernismo no Brasil. “Como afirmou tantas vezes Mário de Andrade, ‘foi ela, foram seus quadros’ e o debate sobre uma nova forma de fazer pintura que deram impulso para cultivar e divulgar o espírito modernista então presente nos jovens escritores e artistas, que se organizaram em grupo e promoveram eventos, reuniões, exposições e diversas publicações. É muito relevante celebrar o centenário da exposição que evidenciou novas posturas artísticas e deu início a um debate que modificaria mais efetivamente o cenário das artes no Brasil”, analisa Renata Cardoso, doutora em história da arte pela Unicamp, com tese sobre a obra de Anita Malfatti.

Tadeu Chiarelli, professor de história da arte no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e diretor-geral da Pinacoteca de São Paulo, atenta para o fato de que, antes de ser uma exposição apenas de sua produção pessoal, a mostra de 1917 era conscientemente de pintura moderna, o que deixa pouco espaço para duvidar das intenções da pintora. “Essa postura da artista em apresentar sua produção dentro de um projeto mais amplo, coletivo, de pintura moderna, confirma-se no fato de que, na mostra, além de suas próprias pinturas, ela também exibiu algumas obras de seu professor e de colegas nova-iorquinos. Tais dados me levam a crer que Malfatti, ao organizar tal exposição, estava decidida a fazer com que seu empreendimento fosse recebido pelo público de São Paulo como uma exposição de pintura moderna, que não devia ser vista apenas como uma excentricidade de sua parte, mas como uma realidade concreta do meio artístico de Nova York, onde ela vivera por um período, e do qual fazia parte”, opina.

Após o boom da Semana de 1922, Anita retomou suas viagens. De 1923 a 1928, morou em Paris, onde viu mais de perto a vanguarda da arte europeia. Então retornou e passou a lecionar desenho na Universidade Mackenzie até o ano de 1933. Em 1942, tornou-se presidente do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo, e durante todo esse tempo nunca parou de dar aulas em sua própria residência. Nesse período de sua criação, ela busca uma espécie de reaproximação com a simplicidade. “Faz parte do clima geral difundido na arte do pós-Primeira Guerra Mundial, caracterizado pelo abandono de determinadas posições e pesquisas mais radicais praticadas no início do século 20, em prol de uma pintura mais simples, menos hermética, retornando a certos princípios da tradição artística. É uma mudança que pode ser observada em vários artistas, nacionais ou estrangeiros. Anita Malfatti estava dentro desse clima e ciente dessas posições e, sem dúvida, colocou essa ideia em prática”, lembra Renata Cardoso.


ACADEMIA E LOBATO
Outro ponto relevante da vida e da obra de Anita é o impacto que a exposição de 1917 causou no antagonismo existente entre arte acadêmica e arte moderna no país. “A relação entre uma e outra não é tão simples assim. O próprio conceito de arte moderna é mais complexo do que marcarmos a inauguração dela no Brasil a partir da exposição de Anita Malfatti em 1917 ou da Semana de Arte Moderna de 1922. As relações na história são mais sutis. No entanto, com a ideia de vanguarda, a arte passa a ser ruptura com uma ordem anterior, fazendo com que a relação do antigo com o moderno seja vista a partir de um enfrentamento direto e absoluto. O moderno é também naturalista, como foram os impressionistas”, explica Rita.

De acordo com Tadeu Chiarelli, antes dela poderiam ser citados outros artistas que expuseram trabalhos que fugiram dos pressupostos da pintura mais tradicional que se produzia na cidade e no país. Porém, ela foi a primeira a opor frontalmente a essa pintura mais em voga de então uma alternativa que “não era apenas fruto de sua pretensa originalidade, mas resultado de uma jovem tradição existente na pintura europeia e norte-americana da época à qual Malfatti foi permeável nos primeiros anos de sua carreira”. Ainda segundo ele, neste momento é que a crítica de Monteiro Lobato, afirmando que Anita não representava o brasileiro e sua natureza com fidelidade, ganha importância. “Ela viveu a circunstância de ter sua exposição de pintura recebida por um crítico como Lobato, que também possuía um projeto para a pintura no Brasil, que nada tinha a ver com o dela”, completa.

Para Renata, a questão entre arte acadêmica e arte moderna é mais complexa. Podemos dizer que a pintura de Anita Malfatti exposta em fins de 1917 intensificou um debate já existente no cenário brasileiro, dividindo opiniões e trazendo outras consequências, como a Semana de Arte Moderna e demais eventos e publicações que difundiram esse movimento artístico no país. “Falamos de transformações que são observadas ao longo dos anos em que esses dois termos estão em jogo. Monteiro Lobato, por exemplo, está no cerne dessa questão no início do século 20, e não exatamente do lado do ponto de vista acadêmico, pois ele tinha uma ideia específica sobre o que era ser moderno e o que deveria ser praticado no Brasil dentro desse parâmetro, com severas críticas a uma determinada arte acadêmica”, afirma.

Regina lamenta que, de certa forma, o nome de Anita é quase inseparável da crítica de Lobato. “Sem dúvida foi uma crítica importante porque ele era uma voz respeitável, tanto que vários críticos foram repetindo em seguida o que ele disse. Se em um primeiro momento a exposição causou curiosidade, no segundo momento isso foi quase classificado como patológico”, lembra.

No entanto, Mário de Andrade, juntamente com seu grupo, irá usar a crítica para fazer oposição entre um Lobato algoz e uma Anita frágil e abatida, imagem que, para a curadora, não corresponde à realidade. “Nessa altura ela tem 28 anos, já estudou na Europa e nos EUA, é uma mulher formada. O que acho que a afetou naquele momento foi a recepção que ela teve em casa. O tio que patrocinou as viagens dela e ficou horrorizado com o que viu. Mas ela sempre seguiu o caminho que quis e hoje, é claro, isso tudo está superado”, complementa.

Para Tadeu, esse senso comum sobre a crítica de Lobato é uma herança das críticas dos modernistas à posição dele sobre os movimentos de vanguarda, declarada no texto sobre a exposição de Anita Malfatti, no qual ele fez questão de demonstrar quanto era contra essas tendências. Segundo ele, Monteiro Lobato foi o único crítico a escrever sobre a exposição respeitando Malfatti como profissional da área.

“Ele não a trata como uma mocinha indefesa, pois reconhece suas qualidades como pintora. Por respeitá-la enquanto artista, ele, que não concordava com o projeto de pintura moderna defendido por ela, rebate os pressupostos estéticos que percebeu naquela exposição. Para mim, ruim foi como a maioria dos outros críticos que escreveram sobre aquela exposição se comportou em relação a Malfatti. Eles, quando muito, a viram apenas como um instrumento descartável de luta ideológica, não a reconhecendo nunca como uma artista profissional, numa atitude, no mínimo, machista”, diz.

“A obra e a exposição da obra de Anita Malfatti trazem a marca da polêmica, a marca da vanguarda na história da arte brasileira, ainda que ela, ao que tudo indica, não tenha tido a intenção de se colocar no centro dessa disputa entre acadêmicos e modernos”, destaca Rita e, em seguida, finaliza: “A inovação formal que ela traz impacta no modo como enxergamos a arte brasileira, ao trabalhar com novas linguagens e temas brasileiros como ‘tropical’ e ‘caboclinha’. Daí a importância de celebrarmos, um século depois, essa exposição”.